8 de fev. de 2011

Histórias do berço

Tenho sorte. Já faz muito tempo que estou por aqui e essa família é mesmo especial. Sabe como é, gente que dá valor a uma amizade antiga! Mudei de casa nem sei quantas vezes... Claro que envelheci, mas não virei um velho ranzinza, desses que ficam rangendo pelos cantos. Nem perdi minha força: continuo firme, aguento bem os trancos, e por isso estou na ativa, em plena forma, prontinho pra entrar em ação a qualquer momento.
Modéstia à parte, sou um berço bem experiente. Sei lidar com os calmos, os alegres, os bagunceiros e também com os chorões. Com esses, a convivência às vezes é mais difícil, mas sei que não é nada pessoal. É que alguns são mais manhosos, cada um tem seu jeitinho. Felizmente os anjos da guarda sempre estão por perto. Falando em anjos, bom, não gosto de me vangloriar, mas muitos já me disseram que não tem berço como eu dando sopa por aí. Parece que os mais modernos nem se mexem, como é que pode? Eu sempre faço questão de colaborar: se o anjo tá distraído e eu tô vendo que o bebê vai aprontar, começo a balançar forte ou invento um rangido, sei lá, dou um jeito de avisar. Afinal, somos uma equipe, a gente trabalha junto durante meses.
Os primeiros a aparecer são os anjos-cantores! Mas não tem aquela coisa de harpa, não, isso é lenda. Tem anjo especialista em cantiga de roda, em chorinho e também em música clássica. Uns cantam tão bem -- o anjo do Lucas, por exemplo. Que voz, um intérprete celestial! Eu sempre ouvia embevecido, quer dizer, quando conseguia escutar a voz dele... Acontece que o Lucas berrava tanto que o pobre do anjo quase sempre amanhecia rouco. Não dava pra competir: o moleque fazia mais barulho que uma orquestra sinfônica! Na minha opinião, ele não gostava do repertório, mas quem disse que o anjo aceitou minha sugestão de mudar a trilha sonora? Nem quis discutir. Era talentoso, mas meio temperamental. Coisa de artista.
O anjo do Tomás era especial. Cantava música indiana, e com um timbre suaaaaaaaaaave, que delícia! A gente logo embalava num sono profundo. Pena ele não ter aparecido de novo por aqui.
Depois de uns meses, os anjos-atletas começam a nos visitar. Esses têm que ser ágeis e espertos porque, vira e mexe, precisam se atirar no chão pra servir de almofada, ou sair correndo antes que o bebê vire a garrafinha de detergente como se fosse mamadeira. Ficam alertas o tempo todo -- janelas, degraus, tomadas, piscinas e ferro de passar, o mundo é cheio de perigos pra bebês do tipo aventureiro. A Bia não dava folga -- não parava de se mexer nem quando estava dormindo. Lembro que minhas costas viviam moídas.
Mas não estou reclamando, não! É assim mesmo, eles vão crescendo e eu, que no começo pareço tão grande, vou ficando cada dia menor. Sinto falta até das pisadas da Bia quando passo muito tempo nesse quarto escuro. Tomara que o próximo bebê já esteja a caminho. E quem sabe o anjo indiano não resolve reaparecer dessa vez?

(ST)

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