30 de jun. de 2011

Poesia de letra

Quando o ci sne aparece deslizando no seu Esse
O Ó da lagoa até treme nas ondinhas do Ene   

(ST)

29 de jun. de 2011

Gata literária

Hoje cedo lembrei da crônica que o Veríssimo escreveu semana passada no Estadão sobre “as coisas que só acontecem nos livros”: personagens que estremecem, ruborizam e fazem muxoxos, por exemplo. Expressões desse tipo podem até cair bem num romance clássico, mas a vida real quase sempre passa longe da linguagem figurada  porque, convenhamos, mesmo quando alguém recebe uma notícia terrível e fica visivelmente abalado é bem difícil ver “sombras passando pelo seu semblante”. Só mesmo a minha gata pra me fazer reconhecer um “olhar de soslaio” – isso acontece sempre que ela aperta os olhinhos pra me encarar de um jeito oblíquo e meio enigmático. Esse olhar geralmente vem acompanhado de certo desprezo por algo que não fiz ou que fiz e a deixou contrariada. E o texto é sempre igual: logo em seguida ela me dá as costas e sai de cena. Não sem antes me lançar um outro olhar, desta vez, fulminante. Sem dúvida, é uma gata literária.

(ST)

22 de jun. de 2011

Planos para o feriado


Tem uns lugares novos que quero conhecer, mas talvez também dê tempo de visitar outra vez o Reino das Águas Claras, o País das Maravilhas ou a Terra do Nunca. Só sei que vou passar o feriado como o reizinho do ilustrador Wolf Erlbruch.

(ST)

20 de jun. de 2011

"Chovar"

Tem dias em que as palavras de sempre não aliviam. Dias em que gente precisa chorar pra valer, feito chuva desmanchando nuvem, com enxurrada de lágrima e soluços de trovão.

(ST)

15 de jun. de 2011

Vulcões

Faz frio. Um vento gelado entra pelas frestas da janela e enche a casa de inverno. Cada um se defende como pode: a gata se encolhe e adormece em cima do roteador quentinho. Eu levo o computador pra mesa da cozinha, ligo meu forno-lareira e dou uma olhada no jornal enquanto penso no que vou escrever aqui. Mas não consigo me concentrar. Olho pra fora, perco um tempo imaginando que os galhos da árvore balançam porque estão tremendo de frio, fico procurando passarinho escondido no meio das folhas arrepiadas e me deixo levar por uma espécie de inquietação, um não-sei-o-quê vai se agitando enquanto o corpo obedece ao toque de recolher que a temperatura impõe. Então volto pro jornal, leio alguma coisa sobre o vulcão chileno e de repente me dou conta de que o inverno às vezes invoca o mesmo espírito dos vulcões: sentada na minha cozinha, em silêncio, vou enrijecendo feito pedra e experimento a sensação dessas montanhas, aparentemente tão calmas. Também eu sinto que algo se move por dentro, como energia de lava, dando sinais de uma estranha ebulição.

(ST)

14 de jun. de 2011

O xis da questão

Ontem encontrei esse autorretrato no quarto do meu filho e resolvi adaptar um textinho já publicado aqui:

O menino não entende raiz quadrada
A língua dos números é complicada
Fórmulas e equações ele não decora
Só vê lógica em História

(ST)

13 de jun. de 2011

Névoa

Hoje o dia acordou com os olhos embaçados, como se ainda estivesse mergulhado no sonho da noite.

(ST)

8 de jun. de 2011

Um fácil difícil

Você sempre teve facilidade pra escrever? Taí uma perguntinha difícil que os pequenos gostam de fazer quando vou nas escolas. Sim, eu achava que tinha a maior facilidade quando fazia as redações da classe toda nos meus tempos de Dante Alighieri. Mas, hoje? Nossa, como é difícil! Alguém já disse – e disse muito bem -- que escrever exige uma facilidade natural e uma dificuldade adquirida. Tem dias que não é moleza conseguir colocar uma ideia entre a primeira letra e o ponto final. Tem que fazer exercício e suar a camisa, flexionar as palavras pra lá e pra cá. Tem que olhar pro céu pra tentar ler as nuvens. É bom passear pelo dicionário com olhos de turista e também andar na rua com ouvidos atentos pra escutar conversa de árvore e de vento. Tem que visitar os lugares onde vivem os monstros e depois passar um tempo entre livros e imagens que contam histórias (como essa lindeza da Maria Eugenia). Pra encontrar o que a gente está procurando tem que se perder no meio disso tudo e daí, sim, às vezes, parece tão fácil escrever.  

(ST)

6 de jun. de 2011

Jogos da memória

A memória tem seus caprichos. Um deles é trazer o passado de volta aos pedaços, como fotos recortadas que mostram só o que se quer guardar. Outro é se confundir com o sonho, inventando coisas que fazem a gente sentir saudade do que não aconteceu.

(ST)

3 de jun. de 2011

Quando tudo faz sentido

Hoje uma pessoa disse que eu estava com uma “expressão engraçada”. Devo ter feito uma cara de espanto tão grande que ela logo quis se explicar e foi emendando que eu parecia ótima, só um pouco diferente, será o cabelo, o óculos novo, o isso e o aquilo? Pois é, cortei o cabelo, respondi pra não esticar a conversa, e na hora tive certeza de que ela achou que eu tinha feito uma plástica ou qualquer coisa do gênero e não estava querendo contar. Só que a “cara boa” não tem nada a ver com isso, e o meu espanto também não. Fiquei surpresa de verdade por outro motivo: por causa de umas coisas emocionantes que aconteceram nos últimos dias, ando sentindo umas ondas de contentamento que vem de repente. É uma felicidade discreta, um sorriso de boca fechada, certo calor que se espalha -- um estado de graça que, agora sei, me deixa com uma “expressão engraçada”.

(ST)

2 de jun. de 2011

Escritora e jornalista

Trabalhei em redações durante muitos anos, até 2009, e nessa época, apesar de já ter alguns livros publicados, ainda me apresentava como jornalista e... escritora -- assim mesmo, com um monte de reticências. Acontece que depois do meu último dia em uma redação, em dezembro de 2008, eu estava decidida a ser cada vez menos jornalista e mais escritora. Isso explica porque não fiquei muito animada quando a Miriam Gabbai, da Callis, me propos fazer um livro sobre os rituais de passagem na adolescência através das religiões. Lá estava eu, de novo, com uma pauta na mão e uma grande pesquisa jornalística pela frente. Topei, mas assim que a nossa reunião terminou, comecei a pensar num jeito mais original de fazer o paradidático que ela estava querendo. Dias depois, liguei pra ela e perguntei: "E se a gente abordasse o tema a partir de depoimentos dos próprios adolescentes?". Pra minha sorte, ela gostou da ideia. Bem mais entusiasmada, saí em busca dos meus entrevistados -- jovens de 17 a 20 e poucos anos, que já podiam olhar com certa distância e refletir sobre os ritos que tinham marcado a passagem da infância para a adolescência.
Logo descobri que os ritos religiosos não eram tão frequentes assim, e mesmo quando aconteciam, não eram lembrados como uma experiência significativa. Mas os trinta e tantos meninos e meninas com quem conversei durante muitos meses lembraram de aventuras, vivências e, em alguns casos, de um único momento especial em que a infância ficou pra trás. Por isso, o livro se chama "O Nosso Rito a Gente Inventa".   
O título que minha editora queria continua faltando no catálogo. De novo, tive sorte: ela entendeu que as histórias que ouvi encantaram a escritora e acabaram desviando o foco da jornalista. Ainda assim, é uma reportagem, narrada pelos próprios entrevistados e lindamente ilustrada pelo talento da Maria Eugenia.

(ST)