29 de jul. de 2011

A aventura de uma leitora

Quem convive com gatos sabe o quanto pode ser difícil ler sem ser interrompida. Posso desligar o celular e o computador, mas não tenho como desligar minha gata. Basta abrir o jornal na mesa e, em questão de segundos, ela estará andando silenciosamente sobre a página, na maior calma, à procura de um lugar pra se acomodar -- nove em dez vezes o ponto escolhido é justamente em cima da notícia que estou lendo. Mesmo se estiver sentada com o jornal ou um livro abertos, ela dá um jeito de atrapalhar: aparece no colo de repente e se encaixa entre os meus olhos e o texto. É sempre assim e só consigo me livrar dela depois de muitos chega-pra-lá. Dependendo da leitura, a intromissão da gata pode me obrigar a retomar um parágrafo que já estava no final ou a retroceder ainda mais, procurando o fio da meada. Isso não costuma ser muito divertido, mas ontem tive uma experiência interessante enquanto estava lendo “A Aventura de um Leitor”, de Ítalo Calvino. O conto está no livro “Os Amores Difíceis” e descreve o que acontece com Amedeo, o leitor-personagem, enquanto tenta terminar o romance que levou para saborear numa praia quase deserta.
“(...) Naquele momento, também, a atenção pela página que estava lendo  -- um longo trecho descritivo – estava afrouxando (...) Era preciso que não levantasse mais os olhos. Pelo menos até o fim do capítulo. Leu-o de um fôlego. A senhora agora estava com um cigarro na boca e o indicava com um sinal. Amedeo teve a impressão de que ela estava tentando chamar a atenção dele já havia algum tempo”.
Igualzinho à minha gata, fazendo de tudo pra roubar minha atenção e me colocando no mesmo vaivém de Amedeo, linha após linha, dividido entre dois desejos: mergulhar na ficção e atender aos chamados da vida real.

27 de jul. de 2011

Novos ares

Não deu cinco minutos e estavam todos lá. Maritacas, sabiás e companhia devoraram rapidamente a bandeja de frutas do drive-thru da janela, reaberto hoje, depois das férias. Pra eles, tudo volta à rotina, mas a minha vai mudar: volto a trabalhar fora de casa, compartilhando um espaço muito charmoso com amigos queridos. Acho que a turma da janela não vai sentir minha falta, mas, talvez, alguns fiquem meio ressentidos porque as porções diárias de bananas e papaias vão diminuir -- como minha salinha tem uma pequena varanda que dá para uma rua cheia de árvores, planejo levar parte do café da manhã pra lá. Imagino que logo, logo vou conhecer outra turma, a do balcão.

Poesia no ponto

Alguém fixou cartazes com poemas de Mário Quintana, Paulo Leminski, Manoel de Barros e Alice Ruiz em dois pontos de ônibus da avenida Doutor Arnaldo. Ao que tudo indica, eles vão continuar por lá -- a Prefeitura não tem nada contra já que as "peças" não ferem a Lei Cidade Limpa, segundo a notícia publicada no Estadão de hoje.
Tomara que a moda pegue.      

25 de jul. de 2011

Céu

Não fui a Machu Pichu quando tinha 20 anos. Pena. Talvez não tivesse ficado com a impressão de estar entrando num parque temático da Disney, disputando um lugarzinho com os milhares de turistas que circulam pelas ruínas -- umas três mil pessoas por dia, e durante o ano todo, segundo o nosso guia. Ainda assim, viajar pelo Peru é uma experiência emocionante: o espírito das montanhas continua intacto e é enfeitiçador, guiando o nosso olhar para o alto o tempo todo. Acho que nunca olhei tanto para o céu.

(ST)    

24 de jul. de 2011

Flor e Juanito

Flor tem dez anos, cinco irmãos e três lhamas -- Juanito, de 4 meses, é seu atual companheiro de "trabalho": todos os dias, depois da escola, Flor veste seus trajes típicos, enfeita o pequeno Juanito e sai pelas ruas de Cusco abrindo a saia e o sorriso para os turistas que querem tirar uma foto ao seu lado por alguns soles. Flor estranha quando começo a conversar com ela -- está acostumada a ser paisagem para a maioria das pessoas com quem cruza. Mas logo se solta, senta do meu lado e pergunta se quero brincar de adivinhação. Topo na hora. Ela diz a primeira letra e me desafia a adivinhar os nomes de cada um dos seus irmãos; dos pais, dos outros lhamas que vivem com a família. Vai me dando dicas, se diverte com os meus chutes. Depois, tenta adivinhar meu nome, minha idade, o mês que nasci, o isso e o aquilo. Faço cafuné na cabeça macia de Juanito, ele fecha os olhinhos, aproveitando o carinho, enquanto Flor propõe outro jogo. Agora tenho que descobrir um enigma fazendo três perguntas. Erro feio e a menina ri muito, esquecida dos turistas e seus soles. Volto pro hotel meio triste, pensando em Flor e seu Juanito, dois pequenos inventando um jeito de brincar nas ruas de Cusco.

(ST)                     

11 de jul. de 2011

Frescor

As palavras precisam fazer ginástica. Sem exercício, elas também enferrujam, perdem a força e o ritmo; o fôlego e a resistência. Vão ficando cada vez menos flexíveis, sem musculatura e, pior: preguiçosas. Como já não têm energia pra se articular em novas posições, acabam ocupando os lugares de sempre, sem ânimo pra tentar um salto surpreendente nem disposição pra se aventurar por uma caminhada mais longa e, claro, sem a menor condição de encarar uma maratona. Com o tempo, endurecem, como se estivessem engessadas, e muitas vezes engordam de forma deselegante, cedendo à tentação de se empanturrar com adjetivos doces demais. Só o treino constante mantém as palavras na sua melhor forma: enxutas, arejadas e com um frescor de coisa viva.  

(ST)  

8 de jul. de 2011

Perto

Gosto muito do trabalho da ilustradora argentina María Wernicke e gostei especialmente do seu "Papai e Eu, Às Vezes", publicado aqui pela Callis, com tradução da querida Carla Caruso. Fiquei namorando o livro desde a primeira folheada, na feira de Bolonha, em março, e ontem finalmente comprei o meu exemplar pra  passear sem pressa na garupa de tantas imagens lindas, como essa aí em cima: é bom lembrar que, às vezes, a gente pode fechar os olhos e se deixar levar por alguém que conhece o caminho.

(ST)

7 de jul. de 2011

Missão impossível

A coisa não vai pra frente: toda vez que tento arrumar a estante, aparece algum livro convidando pra bater papo no sofá.

A ilustração veio daqui.

(ST)

6 de jul. de 2011

5 de jul. de 2011

Brrrrrrrrrr (2)

Embaralhadas debaixo do cobertor, as palavras preferiram continuar dormindo, encolhidas de frio.

(ST)

4 de jul. de 2011

Medo

Ele gosta de se esconder debaixo da cama, quietinho ou sussurrando pesadelos. Prefere a noite escura, mas às vezes aparece sob a luz dos refletores, sobe no palco e rouba a cena quando a gente tem que falar em público. É verdade que até pode ser divertido encontrar com ele na montanha-russa ou no meio de um filme de terror. E tem quem ache emocionante encarar uma aventura ao seu lado, nas alturas ou nas profundezas radicais. Mas em geral ele não é bem-vindo. E não pode dar moleza: se o danado começa a rodear sem mais nem menos, é bom ir dando logo um sonoro xô antes que ele se instale, sem fazer a menor cerimônia. Quando tem espaço, ele se espalha tão rápido que acaba deixando a gente encurralada num cantinho, sem conseguir se mexer. 
Bom é quando dá pra virar o jogo: você topa com aquele monstro na beira do trampolim, mas daí prefere fechar os olhos, respirar fundo e ir em frente. Então descobre que, às vezes, é justamente o medo que ajuda a gente a ter coragem de saltar. 

(ST)

1 de jul. de 2011

Homem-ditado

Quando eu era pequena, achava a maior graça sempre que meu avô dizia: “boca fechada não entra mosquito”. Ficava imaginando porque um mosquito ia querer entrar na boca de alguém com tanto espaço pra voar. Mas ele era severo e não se divertia comigo. Hoje em dia acho até que meu avô se ofendia, como se eu estivesse debochando de uma das suas máximas. Ele sempre tinha uma na ponta na língua pra retrucar ou comentar e principalmente pra encerrar qualquer conversa. Velhinho, ele virou uma espécie de homem-ditado -- dependendo do assunto, a gente já adivinhava o arremate: lá vem a história do silêncio de ouro, agora ele vai dizer que seguro morreu de velho ou que mais vale um pássaro na mão etcétera e tal. Fui crescendo, parei de achar graça e comecei a sentir certa compaixão pelo meu avô, aprisionado nessas frases feitas, cheias de verdades chatas. E cada vez que ele ameaçava soltar um desses provérbios embolorados, era eu quem tinha vontade de dizer: “boca fechada não entra mosquito”.   

(ST)