19 de fev. de 2016

escrever

A moça abaixa o vidro do carro e acende um cigarro. Seu olhar preocupado passa rapidamente pelo espelho lateral. Solta a fumaça e parece relaxar, a cabeça pendendo sobre o ombro por um brevíssimo instante. Então alguém buzina e, automaticamente, ela e eu engatamos e seguimos. Continuo atrás do seu carro por alguns quarteirões, mantendo certa distância: para onde ela estará indo? Me divirto imaginando enredos para aquela personagem: ela tem 30 e poucos anos, usa maquiagem leve, batom discreto. Poderia ser advogada ou, quem sabe, uma executiva tensa, atrasada para a reunião na empresa, as duas mãos segurando firme na direção do carro preto, quatro portas travadas. As árvores que ladeiam a avenida desenham reflexos disformes nos vidros revestidos com película escura, através da qual ela infelizmente não pode ver o céu tão azul desse início de tarde. Pouco antes de uma lombada, ela diminui a velocidade e, por um instante, seus olhos me encaram pelo retrovisor, como que dizendo: ei, você, preste atenção, não vá bater no meu carro! Ou quem sabe tenha percebido e se incomodado porque eu a observava. Quando canso da brincadeira, dobro a esquina e retomo o meu caminho, mas de repente me surpreendo ao ver o carro dela, agora atrás do meu. Antes de nos percamos de vista, lembro do olhar me encarando pelo espelho e penso que, talvez, também ela inventava uma história para mim.

11 de fev. de 2016

calma

Às vezes, ela entra pelos olhos, aproveitando o momento em que eles se fixam no céu para acompanhar um desfile de nuvens, ou então grudam num livro, encantados pelas palavras. Também acontece de ela penetrar pelo nariz e se esparramar, espaçosa, preenchendo todos os cantos com ar de férias -- um ar sem pressa, mais pleno de ar. Quando ela chega, o giro dos pensamentos entra em câmera lenta, o peito alarga e o coração espreguiça, batendo no compasso de uma felicidade quieta, que se anuncia sem disparos. Calma é assim: uma música silenciosa que muda o ritmo de tudo dentro da gente.