24 de set. de 2015

21 de set. de 2015

homem-ditado

Quando eu era pequena, achava a maior graça sempre que meu avô dizia: “boca fechada não entra mosquito”. Ficava imaginando porque um mosquito iria querer entrar na boca de alguém com tanto espaço pra voar. Ele sempre tinha uma dessas máximas na ponta na língua pra retrucar ou comentar e principalmente pra encerrar qualquer conversa. Velhinho, ele virou uma espécie de homem-ditado -- dependendo do assunto, a gente já adivinhava o arremate: lá vem a história do silêncio de ouro, agora ele vai dizer que seguro morreu de velho ou que mais vale um pássaro na mão etcétera e tal. Fui crescendo, parei de achar graça e comecei a sentir certa compaixão pelo meu avô, aprisionado nessas frases feitas, cheias de verdades chatas. E cada vez que ele ameaçava soltar um desses provérbios embolorados, era eu quem tinha vontade de dizer: “boca fechada não entra mosquito”.

15 de set. de 2015

sonho

Éramos nós três na foto, eu, no colo do meu pai, e a minha mãe. De repente, a foto entrou dentro do carro e minha mãe estava dirigindo. Ela sorria, olhando pra frente. Estávamos numa estrada, indo pra praia. Agora eu tinha sete anos e viajava quietinha no banco de trás. Todos estavam felizes dentro do carro, como se fosse o primeiro dia de férias. No momento seguinte, éramos só nós dois, eu, bebê de novo, no colo do meu pai, passeando num jardim. Não tinha ninguém por perto e nós dois estávamos nus. Não acontecia nada e dentro do sonho sonhei que achava estranho não acontecer nada. Mas era gostoso sentir o sol na pele.

3 de set. de 2015

trecho

… de uma longa história:

(…) Eu tinha 12 anos quando minha avó morreu. Três dias antes, ela estava lá, na cozinha que eu conhecia desde sempre, eu e ela em frente ao fogão, duas colheres de pau misturando a massa do brigadeiro na panela de ferro, e eu ria cada vez que mergulhava a ponta do dedo no chocolate quente, Nina, desse jeito você acaba com o recheio do bolo! Ela estava lá, fazendo as coisas de sempre, perguntando da escola, se eu tinha ido ao dentista, querendo saber das novidades e me pedindo pra ligar o forno enquanto untava a forma com uma nuvem fininha de manteiga. Ela ainda estava lá, de pé, ao lado do portão, quando saí carregando o embrulho de papel alumínio com todo o cuidado, minha mãe com o carro ligado, reclamando do trânsito, prometendo voltar no sábado, e o cheiro quente do bolo dentro do carro, virando a esquina enquanto ela acenava pra nós. Ela ainda estava lá.
Meus primos e eu ficamos na casa de uma vizinha da tia Helô. Não nos levaram ao velório nem ao enterro. Melhor que lembrássemos da nonna como ela era, disseram, e em algum momento, quando já estávamos prontos pra dormir, lembrei do bolo, ainda pela metade, deixado sobre a mesa, junto com as xícaras e os restos do café da manhã, interrompido às pressas, enquanto minha mãe andava pela casa, desnorteada, depois de desligar o telefone. A dor explodiu de repente, sacudindo meu corpo com um choro surdo e assustador, uma agonia que ainda não sabia ser lágrima, gritando por dentro, em cada canto, como se precisasse juntar forças pra passar pela garganta, estrangulada, a boca aberta enquanto minha barriga chorava, meus braços choravam, todos os fios dos cabelos choravam. Num impulso, talvez porque não soubessem o que fazer, meus primos me abraçaram com força, e o que em mim tentavam conter aos poucos foi se espalhando pelos três em forma de espasmos, soluços, líquidos, o mesmo sangue de três netos circulando num único corpo que finalmente chorava.
A morte da minha avó foi uma notícia, a máscara de dor no rosto da minha mãe e um buraco pra onde, por muito tempo, eu olhava, indignada, sem compreender como ela tinha partido sem se despedir.

(…)