22 de dez. de 2009

Passagens

Nos últimos meses andei conversando com um monte de gente -- especialistas e adolescentes -- sobre rituais de passagem, assunto de dois livros que me esperam em 2010. Muitas vezes me emocionei com os garotos e garotas contando como se despediram da infância, os que encararam essa passagem sem olhar pra trás, decididos e curiosos, e também os mais reticentes, que cruzaram a ponte com certo receio e alguma saudade.
Durante essas conversas, compartilhei descobertas, aventuras e conquistas, porque, de alguma forma, ainda sou a menina de 5, a garota de 17, a mulher de 30 e de todas as idades que já tive. Ouvindo essas histórias me dei conta de que nos últimos doze meses eu também estava em pleno ritual de passagem, trabalhando em casa depois de anos e anos em redações, numa fase nova, empolgante e, às vezes, um pouco amedrontadora, sentindo tudo o que a gente sente nos períodos de mudança em qualquer idade -- de um jeito ou de outro, estamos sempre cruzando pontes. Bom é quando fazemos essas passagens com alegria, em busca de tudo o que ainda está pra acontecer.
Até janeiro!

(ST)

19 de dez. de 2009

Tesouros

“Não podemos encontrar o sobrenatural sem passar pela natureza"
...
-- Hoje a fila das formigas ficou enorme! Você tinha que ver! Começava perto da jabuticabeira e terminava lááááááá no pé de limão. Acho que tinha uns três quilômetros. Ou mais, nem sei!
A mãe explicou que essa era a distância entre a casa deles e a da avó.
-- Mas se elas cruzavam o jardim de um muro até o outro, então era mesmo uma fileira e tanto – disse a mãe, enquanto tentava clarear o encardido das unhas do menino. -- Você andou cavando buraco de novo? Desse jeito, nosso jardim vai virar uma piscina!
Canteiro de flor cheirosa, passarinho fazendo lanche de fruta, tatu-bola disfarçado de pedrinha, tesouros escondidos, quanta história acontecia naquele jardim. E foi por causa das escavações que a mãe quis saber:
-- E o Trix? Faz tempo que você não fala dele...
Trix, o gnomo que morava no tronco do velho chorão, a árvore mais antiga, mais alta e a mais bonita da rua.
O menino enfiou a cabeça debaixo do chuveiro, fingindo não ter escutado a pergunta, e continuou falando das formigas. A mãe não ia gostar nem um pouco se soubesse que Trix estava seguindo uma pista que levava à pracinha, do outro lado da rua. É que o gnomo tinha certeza de que, ali, eles encontrariam um tesouro.
Por isso mesmo, o menino levou um susto, no dia seguinte, quando viu o amigo pulando no topo de uma grande pedra, bem no meio do jardim. Trix fazia sinais, apontando para o chão, excitadíssimo.
-- Mas você não disse que a gente ia cavar o próximo buraco lá na pracinha?
-- Disse e agora desdigo! As formigas me trouxeram de volta pra cá. E elas pararam exatamente neste ponto! Aqui, aqui mesmo, três vezes aqui!
Foi só o gnomo indicar o lugar pra que o menino começasse o cava-e-tira-terra-e-cava-e-tira-terra de todo dia. E como cavou nesse dia! No final da tarde, cercado de montanhinhas de terra e com os braços doloridos, ele já estava parando quando sua mão esbarrou em alguma coisa dura, fria e esquisita.
-- Trix, o que será isso? Uma pedra?
Enfiou a cara no buraco, mas não conseguiu ver nada. Lá dentro, no fundo, era escuro, e fora, o sol já ia se apagando.
-- Pega uma lanterna! – disse o gnomo, mandão como sempre.
O menino se irritava com essa mania do amigo ficar dando ordens o tempo todo, mas dessa vez não reclamou porque aquela era mesmo uma ótima ideia. Correu até a cozinha: sabia que o pai havia comprado uma lanterninha para deixar ao lado da pia, na “gaveta das emergências”. Aproveitou pra pegar as pás de praia com dentes, novinhas, ainda guardadas na parte de cima do armário.
Voltou ao jardim com todo o equipamento e retomou a escavação imediatamente, nem lembrou da dor nos braços. Pra chegar na “coisa”, o menino agora teria que cavar de lado, porque, fosse lá o que fosse, aquilo estava enterrado um pouquinho mais à direita. E cava e cutuca e se entorta e quando já não tinha mais jeito de alcançar o fundo do buraco-túnel, ele teve a ideia de usar os pés para tentar enxergar lá embaixo. Enfiou uma perna dentro do buraco, bem esticadinha, e colocou a lanterna acesa encaixada entre os dedos do pé. Foi quando viu melhor a “coisa”, e achou que aquilo não parecia uma pedra.
-- Trix! Trix! Você acha... ? Será que é? ... É... Pode ser, não é? Pode mesmo ser um baú! Ou será que é uma arca?
O menino esticou bem o pé e mirou com a lanterna, mas só conseguiu ter certeza de que a "coisa" não era grande, e era amarronzada, de um tom que se confundia demais com a cor da própria terra. Mas aquela caixa bem que poderia ter sido dourada um dia!
Foi então que Trix mergulhou no buraco, escorregando pela perna do menino até chegar ao baú. De lá, mãos em concha em volta da boca, anunciou:
-- Acho que finalmente encontramos! Sim, sim, sim! Três vezes sim!
Com o pulo de alegria que deu, o menino desmanchou dois dos montinhos de terra que tinha erguido ao lado do buraco. Nem ligou pra a bronca que a mãe daria por causa da bagunça. Agora, só pensava num jeito de trazer o bauzinho para cima: claro que as formigas não conseguiriam puxar aquilo e, a essa hora, todos os gnomos das redondezas já tinham se recolhido pra dentro de suas árvores. De novo, o menino tentou puxar o objeto com os pés, sem sucesso -- o bauzinho nem se mexia, era como se estivesse plantado na terra. Lá de dentro, Trix gritou outra vez:
-- Acho que encontrei uma fechadura. Tento entrar pela fresta e saio logo pra contar tudo!
Entrou, mas não saiu. E não saiu e não saiu e na hora em que a mãe ameaçou um castigo, o menino teve que voltar pra casa. Estava anoitecendo, não adiantou protestar nem dizer que estava muito preocupado com o amigo.
-- Mas, mãe... E se ele ficou preso? E se tinha algum bicho horrível lá dentro?
-- Tenho certeza de que está tudo bem. O Trix sabe se virar. Você vai ver como, amanhã, ele aparece com um monte de novidades...
Exausto, o menino adormeceu preocupado, pensando nos perigos que o amigo podia estar correndo. Mesmo assim, teve um sonho lindo. Nele, o Trix estava feliz da vida, pulando entre montanhas de moedas e pedras preciosas, escorregando por colares de pérolas, dando cambalhota no meio de enormes anéis de ouro. Pena que a sensação de pesadelo do dia anterior voltou assim que ele abriu os olhos, logo cedo.
A primeira coisa que pensou: o Trix pode ter ficado enroscado nas correntes de ouro ou, pior, foi soterrado por uma esmeralda gigante!
Com o peito apertado de tanta aflição, saltou da cama e correu para o jardim, ainda de pijama. Olhou na direção da pedra e teve que esfregar os olhos pra ter certeza do que estava vendo: ali havia uma... “coisa”. Seria aquela coisa? E como o Trix tinha conseguido desenterrar o tesouro?
-- Trix! Triiiiiiiiiiiiiiiiiiiiquis! TRIX!
Não demorou nem um minuto pra que o gnomo aparecesse num dos galhos do chorão, espreguiçando.
-- Bom dia!
-- Trix! Você está bem?
-- Desculpe, desculpe, desculpe! Três vezes desculpe! Você ficou preocupado, eu sei. Mas já era noite alta quando saí do buraco, o que foi uma sorte. Encontrei uma turma de corujas que só aparece por aqui nesse horário. Foram elas que me ajudaram a puxar o... hã, hã... o... baú.
Só então o menino lembrou.
-- E cadê o tesouro?
De braços cruzados, Trix encolheu os ombros e torceu a boquinha, apontando com o queixo na direção da pedra. O menino então correu para lá. Com as palmas das mãos, começou a esfregar energicamente a superfície impregnada de terra. E esfregou com tanta força que não demorou nada pra que o sonho do tesouro se desmanchasse diante de seus olhos: o baú não passava de uma velha lata de biscoitos, parecida com umas que ele já tinha visto na casa da avó. A “fresta da fechadura” nada mais era do que um buraquinho aberto pela ferrugem, e a lata pesava daquele jeito porque estava cheia de terra. Com a ajuda da pá que tinha ficado por ali, o menino conseguiu tirar a tampa, ou melhor, o “telhado” da casa de uma família de minhocas gordinhas.
Chateado, fechou a lata e já ia devolver o falso tesouro ao seu lugar de origem quando um raio de sol furou uma das muitas nuvens que encobriam o céu. Na mesma hora, o ar esquentou e alguma coisa reluziu dentro do buraco.
-- TRIX!
O gnomo estava procurando o pé direito da sua botinha e, por isso, não prestou muita atenção no menino.
-- O quê?
-- Você viu isso?
-- Vi o quê? E você, viu meu sapato? Onde será que deixei...
-- O brilho... Lá dentro... Mas, como é que pode um buraco brilhar?
-- Brilho?
-- É! Eu vi, juro que vi!
-- Ah, deve ser o reflexo de alguma aguinha que brotou lá no fundo.
-- Mas, Trix...
-- Ahá! Finalmente! Aqui está!
Enquanto calçava o pé perdido, o gnomo emendou:
-- Vou retomar as investigações lá na pracinha. Você vem comigo?
Dessa vez foi o menino que não respondeu -- continuava atônito com o que acabara de ver. O gnomo, por sua vez, sentiu-se rejeitado, virou as costas e saiu marchando, rumo à praça.
Ainda estava segurando a lata-casa das minhocas na mão quando o sol reapareceu, iluminando o jardim. Como tudo em volta, o buraco clareou e, de repente, aconteceu de novo. O brilho! Com o olhar hipnotizado, o menino seguiu a luz e descobriu que havia, sim, alguma coisa brilhante e de verdade, saindo da terra, como se fosse um espinho de vidro!
Colocou a lata no chão e, com a ajuda da pá, cutucou em volta daquele ponto, com delicadeza. Pouco a pouco, muitas outras pontinhas de tamanhos e formas diferentes, reluzindo com mais ou menos intensidade, foram surgindo diante dos seus olhos extasiados. Ali estava, incrustado na terra, um cristal gigante e translúcido.

Fascinado, o menino ficou admirando as faces daquela pedra imensa e luminosa, esculpida pela natureza com a perfeição de uma joia rara, e teve uma certeza: era o tesouro dos tesouros. Podia até ser uma pedra mágica!
Não via a hora de mostrar ao Trix.

A frase que abre essa história é de Arnaud Desjardins. Conto publicado no livro "Era Uma Vez Para Sempre"

17 de dez. de 2009

16 de dez. de 2009

Aula de português

De vez em quando visito Zanzinzum pra aprender alguma coisa de zanzinzunês. Não é longe, dá pra ir a qualquer hora -- é só embarcar num dicionário cinco estrelas e fazer a viagem numa poltrona macia, com tempo pra xeretar entre as fronteiras que vão de A a Z. Antes pedir informação, tento me virar lendo as placas em voz alta pra ver se o som me diz alguma coisa, mas erro em 99% das vezes. Encontro a palavra sujigola e penso imediatamente num babador manchado de mingau, uma espécie de gola que a gente pode sujar sem culpa. Mas logo descubro que esse é o nome do freio que passa debaixo do queixo do cavalo, aquela correia que prende o animal. Nada a ver com a liberdade que um babador pode significar diante de um prato de macarrão com molho de tomate! Depois encontro a palavra aralha e erro de novo, imaginando um pássaro exótico e não uma novilha que, mesmo sendo pequenininha, já pode puxar o arado. E empaco de vez em patripotestal. Lembro de pátria, pedestal, fico repetindo a palavra em voz alta e sem querer começo a cantar que moro num país tropical. Moro mesmo, mas nunca usei essa palavra pra dizer que o poder familiar se concentra na figura paterna. Faço nova escala, agora na enigmática descimbrar. Acho bonito o jeitão desse verbo que me faz pensar em aventura, grandes descobertas: "O marujo Simbad descimbrou-se pelos mares...". Não combina? Mas não é nada disso: descimbrar é retirar os cimbres de um arco depois da construção. Pena, acho que nunca vou ter ocasião pra usar uma palavra tão sonora. Na última parada do percurso traduzo recovo como esconderijo e, surpresa, descubro que essa é a posição em que estou enquanto leio: recostada no cotovelo. Difícil essa língua, não?

(ST)

15 de dez. de 2009

A bela convencida


Nessa história a bela não adormece, mas aborrece todo mundo. Tem coisa mais chata do que gente convencida?

11 de dez. de 2009

Sem bicicleta

Nem férias nem greve. Fiquei sem internet depois da tempestade de terça-feira e acreditei na história do técnico que viria em 24 horas. Três dias, mil e cem telefonemas e zero técnicos depois, cá estou eu, na livraria da Vila, tentando recuperar o tempo, o bom humor e a minha fé em Papai Noel. Até segunda!

(ST)

3 de dez. de 2009

Em coreano!

Vai ser difícil conferir a tradução, mas nesse momento isso não tem a menor importância. Fiquei muito feliz com a notícia: o "Como Começa" vai ser publicado na Coréia. Não é demais?

(ST)

2 de dez. de 2009

Do meu lugar

Olho pro céu e vejo o avião virando um pontinho atrás das nuvens. Olho pro chão e vejo a formiga virando um gigante capaz de carregar a maior folha do mundo.

(ST)

Abecedário-literário


A de Alice, C de Capitão Nemo, S de Sherlock Holmes... Cada letra desse alfabeto representa um personagem -- clique na imagem pra aumentar e tente descobrir outros nomes. Eu achei bem difícil, mas curti a brincadeira que encontrei lá no Librosfera.

1 de dez. de 2009

O grande encontro

Era uma vez um Autor com uma vaga ideia para uma nova história. E como nessa história tinha vaga de verdade para um grande Personagem, pensou em começar sua busca colocando um anúncio no jornal.

Procura-se um Personagem disposto a viver aventuras eletrizantes. Não é necessário ter experiência no tema, mas algumas características serão especialmente consideradas: um certo preparo físico, raciocínio rápido e personalidade carismática.


O primeiro candidato a se apresentar foi logo dizendo:
- Participei de passagens importantes de muitos livros famosos, imortalizados por personagens estrelados.
- Ah, parabéns! O senhor tem razão. Os grandes personagens não envelhecem. Mas, se entendi bem, o senhor nunca foi o protagonista desses enredos, certo? Enfim... É uma pena, mas um coadjuvante de idade avançada não é o que busco. Desculpe!
Dois dias e muitas páginas amassadas depois, o Autor recebe outro candidato - um tipo muito sincero, mas bastante imaturo.
- Já passei por muitas imaginações, mas...
- Mas?
- Nunca cheguei ao papel...
- Ah...
- Tenho muito potencial, mas...
- Mas?
- Preciso de alguém que acredite em mim, que me decifre e me revele com todas as letras, entende?
- Você é muito interessante. Mas...
Na semana seguinte, com a cabeça embaralhada e ainda sem um herói à vista, o Autor começa a pensar em outras possibilidades e, repentinamente, tem uma grande ideia: e se o narrador transformasse a própria aventura em Personagem? Animado, ele já ia colocar o texto em ação quando o telefone toca.
- Bom dia. Posso falar com o Autor?
- E o senhor é...?
- O Personagem.
- Ah, claro, o anúncio...
- Exato, o anúncio. Muito bem escrito, por sinal.
- ...?
- Quantos livros o senhor publicou?
- ... !?!
- Alô? Alô, o senhor está na linha?
- Sim... Claro, estou ouvindo... Continue, por favor!
- Desculpe! Espero que não me leve a mal, mas preciso saber um pouco mais sobre o seu estilo, como é o seu processo criativo, quais gêneros o senhor domina, se tem livros premiados... É que não me encaixo com naturalidade em qualquer texto. Tenho que sentir alguma consistência literária, entende?

O Autor experimentou vários estados de espírito. No início, ficou atônito. Mais que isso, catatônico! Depois, a palavra certa seria "irritado". Mas, pouco a pouco, foi se sentindo, como dizer?, impressionado! Pois, à medida em que respondia às perguntas do Personagem, foi se surpreendendo mais e mais com suas próprias palavras.
No dia seguinte, conversaram de novo. E no outro, outra vez.
Trocaram ideias durante tanto tempo que acabaram se tornando grandes amigos. Anos depois, eram tão íntimos que um logo adivinhava o que o outro tinha acabado de pensar e, juntos, inventaram histórias fabulosas.

Esse miniconto foi publicado em maio pela revista Nova Escola.