19 de dez. de 2009

Tesouros

“Não podemos encontrar o sobrenatural sem passar pela natureza"
...
-- Hoje a fila das formigas ficou enorme! Você tinha que ver! Começava perto da jabuticabeira e terminava lááááááá no pé de limão. Acho que tinha uns três quilômetros. Ou mais, nem sei!
A mãe explicou que essa era a distância entre a casa deles e a da avó.
-- Mas se elas cruzavam o jardim de um muro até o outro, então era mesmo uma fileira e tanto – disse a mãe, enquanto tentava clarear o encardido das unhas do menino. -- Você andou cavando buraco de novo? Desse jeito, nosso jardim vai virar uma piscina!
Canteiro de flor cheirosa, passarinho fazendo lanche de fruta, tatu-bola disfarçado de pedrinha, tesouros escondidos, quanta história acontecia naquele jardim. E foi por causa das escavações que a mãe quis saber:
-- E o Trix? Faz tempo que você não fala dele...
Trix, o gnomo que morava no tronco do velho chorão, a árvore mais antiga, mais alta e a mais bonita da rua.
O menino enfiou a cabeça debaixo do chuveiro, fingindo não ter escutado a pergunta, e continuou falando das formigas. A mãe não ia gostar nem um pouco se soubesse que Trix estava seguindo uma pista que levava à pracinha, do outro lado da rua. É que o gnomo tinha certeza de que, ali, eles encontrariam um tesouro.
Por isso mesmo, o menino levou um susto, no dia seguinte, quando viu o amigo pulando no topo de uma grande pedra, bem no meio do jardim. Trix fazia sinais, apontando para o chão, excitadíssimo.
-- Mas você não disse que a gente ia cavar o próximo buraco lá na pracinha?
-- Disse e agora desdigo! As formigas me trouxeram de volta pra cá. E elas pararam exatamente neste ponto! Aqui, aqui mesmo, três vezes aqui!
Foi só o gnomo indicar o lugar pra que o menino começasse o cava-e-tira-terra-e-cava-e-tira-terra de todo dia. E como cavou nesse dia! No final da tarde, cercado de montanhinhas de terra e com os braços doloridos, ele já estava parando quando sua mão esbarrou em alguma coisa dura, fria e esquisita.
-- Trix, o que será isso? Uma pedra?
Enfiou a cara no buraco, mas não conseguiu ver nada. Lá dentro, no fundo, era escuro, e fora, o sol já ia se apagando.
-- Pega uma lanterna! – disse o gnomo, mandão como sempre.
O menino se irritava com essa mania do amigo ficar dando ordens o tempo todo, mas dessa vez não reclamou porque aquela era mesmo uma ótima ideia. Correu até a cozinha: sabia que o pai havia comprado uma lanterninha para deixar ao lado da pia, na “gaveta das emergências”. Aproveitou pra pegar as pás de praia com dentes, novinhas, ainda guardadas na parte de cima do armário.
Voltou ao jardim com todo o equipamento e retomou a escavação imediatamente, nem lembrou da dor nos braços. Pra chegar na “coisa”, o menino agora teria que cavar de lado, porque, fosse lá o que fosse, aquilo estava enterrado um pouquinho mais à direita. E cava e cutuca e se entorta e quando já não tinha mais jeito de alcançar o fundo do buraco-túnel, ele teve a ideia de usar os pés para tentar enxergar lá embaixo. Enfiou uma perna dentro do buraco, bem esticadinha, e colocou a lanterna acesa encaixada entre os dedos do pé. Foi quando viu melhor a “coisa”, e achou que aquilo não parecia uma pedra.
-- Trix! Trix! Você acha... ? Será que é? ... É... Pode ser, não é? Pode mesmo ser um baú! Ou será que é uma arca?
O menino esticou bem o pé e mirou com a lanterna, mas só conseguiu ter certeza de que a "coisa" não era grande, e era amarronzada, de um tom que se confundia demais com a cor da própria terra. Mas aquela caixa bem que poderia ter sido dourada um dia!
Foi então que Trix mergulhou no buraco, escorregando pela perna do menino até chegar ao baú. De lá, mãos em concha em volta da boca, anunciou:
-- Acho que finalmente encontramos! Sim, sim, sim! Três vezes sim!
Com o pulo de alegria que deu, o menino desmanchou dois dos montinhos de terra que tinha erguido ao lado do buraco. Nem ligou pra a bronca que a mãe daria por causa da bagunça. Agora, só pensava num jeito de trazer o bauzinho para cima: claro que as formigas não conseguiriam puxar aquilo e, a essa hora, todos os gnomos das redondezas já tinham se recolhido pra dentro de suas árvores. De novo, o menino tentou puxar o objeto com os pés, sem sucesso -- o bauzinho nem se mexia, era como se estivesse plantado na terra. Lá de dentro, Trix gritou outra vez:
-- Acho que encontrei uma fechadura. Tento entrar pela fresta e saio logo pra contar tudo!
Entrou, mas não saiu. E não saiu e não saiu e na hora em que a mãe ameaçou um castigo, o menino teve que voltar pra casa. Estava anoitecendo, não adiantou protestar nem dizer que estava muito preocupado com o amigo.
-- Mas, mãe... E se ele ficou preso? E se tinha algum bicho horrível lá dentro?
-- Tenho certeza de que está tudo bem. O Trix sabe se virar. Você vai ver como, amanhã, ele aparece com um monte de novidades...
Exausto, o menino adormeceu preocupado, pensando nos perigos que o amigo podia estar correndo. Mesmo assim, teve um sonho lindo. Nele, o Trix estava feliz da vida, pulando entre montanhas de moedas e pedras preciosas, escorregando por colares de pérolas, dando cambalhota no meio de enormes anéis de ouro. Pena que a sensação de pesadelo do dia anterior voltou assim que ele abriu os olhos, logo cedo.
A primeira coisa que pensou: o Trix pode ter ficado enroscado nas correntes de ouro ou, pior, foi soterrado por uma esmeralda gigante!
Com o peito apertado de tanta aflição, saltou da cama e correu para o jardim, ainda de pijama. Olhou na direção da pedra e teve que esfregar os olhos pra ter certeza do que estava vendo: ali havia uma... “coisa”. Seria aquela coisa? E como o Trix tinha conseguido desenterrar o tesouro?
-- Trix! Triiiiiiiiiiiiiiiiiiiiquis! TRIX!
Não demorou nem um minuto pra que o gnomo aparecesse num dos galhos do chorão, espreguiçando.
-- Bom dia!
-- Trix! Você está bem?
-- Desculpe, desculpe, desculpe! Três vezes desculpe! Você ficou preocupado, eu sei. Mas já era noite alta quando saí do buraco, o que foi uma sorte. Encontrei uma turma de corujas que só aparece por aqui nesse horário. Foram elas que me ajudaram a puxar o... hã, hã... o... baú.
Só então o menino lembrou.
-- E cadê o tesouro?
De braços cruzados, Trix encolheu os ombros e torceu a boquinha, apontando com o queixo na direção da pedra. O menino então correu para lá. Com as palmas das mãos, começou a esfregar energicamente a superfície impregnada de terra. E esfregou com tanta força que não demorou nada pra que o sonho do tesouro se desmanchasse diante de seus olhos: o baú não passava de uma velha lata de biscoitos, parecida com umas que ele já tinha visto na casa da avó. A “fresta da fechadura” nada mais era do que um buraquinho aberto pela ferrugem, e a lata pesava daquele jeito porque estava cheia de terra. Com a ajuda da pá que tinha ficado por ali, o menino conseguiu tirar a tampa, ou melhor, o “telhado” da casa de uma família de minhocas gordinhas.
Chateado, fechou a lata e já ia devolver o falso tesouro ao seu lugar de origem quando um raio de sol furou uma das muitas nuvens que encobriam o céu. Na mesma hora, o ar esquentou e alguma coisa reluziu dentro do buraco.
-- TRIX!
O gnomo estava procurando o pé direito da sua botinha e, por isso, não prestou muita atenção no menino.
-- O quê?
-- Você viu isso?
-- Vi o quê? E você, viu meu sapato? Onde será que deixei...
-- O brilho... Lá dentro... Mas, como é que pode um buraco brilhar?
-- Brilho?
-- É! Eu vi, juro que vi!
-- Ah, deve ser o reflexo de alguma aguinha que brotou lá no fundo.
-- Mas, Trix...
-- Ahá! Finalmente! Aqui está!
Enquanto calçava o pé perdido, o gnomo emendou:
-- Vou retomar as investigações lá na pracinha. Você vem comigo?
Dessa vez foi o menino que não respondeu -- continuava atônito com o que acabara de ver. O gnomo, por sua vez, sentiu-se rejeitado, virou as costas e saiu marchando, rumo à praça.
Ainda estava segurando a lata-casa das minhocas na mão quando o sol reapareceu, iluminando o jardim. Como tudo em volta, o buraco clareou e, de repente, aconteceu de novo. O brilho! Com o olhar hipnotizado, o menino seguiu a luz e descobriu que havia, sim, alguma coisa brilhante e de verdade, saindo da terra, como se fosse um espinho de vidro!
Colocou a lata no chão e, com a ajuda da pá, cutucou em volta daquele ponto, com delicadeza. Pouco a pouco, muitas outras pontinhas de tamanhos e formas diferentes, reluzindo com mais ou menos intensidade, foram surgindo diante dos seus olhos extasiados. Ali estava, incrustado na terra, um cristal gigante e translúcido.

Fascinado, o menino ficou admirando as faces daquela pedra imensa e luminosa, esculpida pela natureza com a perfeição de uma joia rara, e teve uma certeza: era o tesouro dos tesouros. Podia até ser uma pedra mágica!
Não via a hora de mostrar ao Trix.

A frase que abre essa história é de Arnaud Desjardins. Conto publicado no livro "Era Uma Vez Para Sempre"

3 comentários:

Denise Portes disse...

Silvana
Ontem, tarde da noite, estive por aqui e pensei: “Vou ler essa história amanhã, domingo, na hora de ir pra praia.”
Gostei muito! Virei criança e estou saindo de casa pensando: “Será que encontro os tesouros do mar?”
Um beijo
Denise

silvana tavano disse...

Com certeza, Denise! É só mergulhar fundo pra encontrar... E já que você tá indo pra praia atrás de tesouros, aproveita pra procurar "As Fadas da Areia", da May.

beijo!

No meio do meu caminho disse...

Lindo texto! Esse menino tem o dom de formigar! Ele se parece muito com o Levi,personagem de Gero Camilo na peça "Aldeotas". Você conhece? Assista essa entrevista feita pela Bravo! Linda , linda! http://www.youtube.com/watch?v=IL8JFk1sefE

um abraço!