16 de jul. de 2020

tarefas do dia

lavar as mãos os cabelos as roupas os alimentos a pia a dor
varrer o chão a saudade o pó os pelos as migalhas do café da manhã
espanar livros papéis móveis rodapés angústias janelas
esfregar paredes panos panelas raiva
                                 [esfregar com raiva]
remover manchas, trocar lençóis, dobrar toalhas
enxugar a louça, guardar os talheres, regar as plantas
limpar os vestígios do dia branco

16 de jun. de 2020

na cozinha

Marte, em movimento pelo seu signo, está em contato desafiador com a Lua. O dia pode apresentar uma série de entraves e conflitos com os quais você deve lidar com sabedoria. Pode haver discordância entre os seus propósitos e os de seus familiares

ah barbara abramo, hoje você errou em cheio!
nenhuma discordância no horizonte. o único familiar por perto (no momento) faz amor e pula a guerra, no máximo uma ou outra batalhinha, mas ele só arrisca quando tem certeza que a minha lua não tá virada.

adivinhar meus humores não é difícil. quer dizer, não era. ideias singulares como fazer um bolo de laranja às 3 da manhã ou resolver organizar os armários da cozinha só eram postas em prática em momentos de desespero. mas esse padrão deixou de funcionar nos últimos meses. mais que isso, lavar pilhas de pratos e arear panelas tem me colocado num estado interessante – meditativo --, e me pego cantando sem mais nem por quê. quando o interfone toca, meu coração dispara antecipando uma possível alegria: quem sabe a panela elétrica (vermelha, lindíssima!), promessa de arroz finalmente soltinho; quem sabe o pote novo para substituir o que triturei tentando moer beterrabas no liquidificador...

infelizmente, a paz da cozinha às vezes é ameaçada pela minha falta de talento. mas tenho aprendido muito na base da tentativa e erro, com resiliência, humildade e a ajuda inestimável de rita lobo, sempre ao meu lado, linda, loira e perfumada, ensinando o passo a passo de cada nova aventura --- como picar, quanto tempo marinar, qual a altura da panela e a temperatura do forno.
de vez em quando lembro de como era antes, e quase não acredito naquele tempo em que minha cozinha era um lugar de passagem – como é possível que eu ficasse aqui só durante os minutos suficientes para esquentar qualquer coisa no micro ou à espera de um café expresso?
sei que nada será como está, nada será como antes amanhã. 
canto enquanto tiro a mesa, talheres na gaveta, panos de prato no varal, cozinha arrumada, ah, a plenitude da missão cumprida...
mas
quando o sol da tarde ilumina a mesinha da copa, sento numa cadeira e choro.
saudade de ler horóscopo e achar que faz sentido.
saudade da certeza de que a vida faz sentido.

30 de abr. de 2020

aladim

Sempre tive certeza que ele me chamou. De que outro modo eu teria notado um objeto tão pequeno e escuro perdido entre tantas miudezas misturadas naquela caixa? Perguntei o preço e percebi que o dono da barraca se surpreendeu – na mesma hora tentou dar ares de antiguidade à bugiganga. Pechinchei por praxe, teria comprado mesmo sem o mísero desconto. Ali estava a resposta, o sinal que eu buscava naqueles dias em que tudo parecia impossível.
Não teria sido difícil restaurar o brilho do cobre. Com uma mistura caseira de vinagre e sal, bastariam algumas esfregadelas para remover o azinhavre do tempo. Nunca fiz isso, esfregar pra quê? Não quero que ele saía lá de dentro me dizendo que só tenho direito a três desejos. Nos últimos vinte anos, conversamos muitas vezes, eu atenta, e ele, mesmo em vigília, não se fez surdo aos meus pedidos. É verdade que nem todos se concretizaram, e ainda bem – me dei conta de que já desejei muitas coisas que não importam. Até nisso ele se mostra genial.
Não gosto de incomodá-lo à toa. Ele está no lugar de sempre, na minha estante, adormecido, talvez sonhando com mil e uma histórias, ou quem sabe, à espera de que eu finalmente o liberte. Não sei o que aconteceria depois disso. Coisas que pareciam impossíveis já estão acontecendo, e temo que ele ficasse frustrado tentando resolver tudo num passe de mágica. Melhor que ele continue ali, emanando sua magia em pequenas poções -- acho que ele não faz ideia do próprio poder, talvez nem acredite quando conto do brilho que ele irradia lá de dentro: toda vez que olho, a lampadinha acende, como naquele dia, tanto tempo atrás, e nessa hora, eu sei: isso também vai passar.

11 de abr. de 2020

bombom

às 11 da noite, pulo da cama, visto uma malha em cima do pijama -- uma malha bonita – me penteio e desço correndo pelas escadas: chego em cinco minutos, dizia a mensagem, e já faz mais de cinco que olho pra rua deserta, o silêncio da noite ecoando o silêncio dos dias, 28 dias desde o último encontro, e nem percebo a saudade abrindo o portão do prédio, eu passeando pela praça vazia, na mão um bombom que lembrei de trazer, não é o que você mais gosta, mas é doce e macio, o abraço que não posso dar, amor embrulhado no gesto possível, penso, e de repente um vento frio me cobre de tristeza, mas não, não agora que a lua cheia aparece afastando as nuvens e ilumina o carro que dobra a esquina e buzina acordando a noite, e você: andamos lado a lado e você tem um ano, três anos, oito anos e todos os tempos giram entre nós enquanto vejo você tão alto andando entre as árvores que também cresceram, ainda a mesma praça e nós tão outros, falando de coisas sem importância, você diz que não aguenta mais comer grão de bico e rimos juntos quando conto do medo com a panela de pressão apitando histérica, e nós calmos, as palavras se entrelaçando feito mãos, o bombom já no seu bolso, caminhamos devagar em direção ao carro que sigo pela rua logo deserta outra vez, no silêncio que agora é paz.