30 de jun. de 2010

A mágica das palavras

Estou lendo um desenho animado. "Tudo Depende de Como Você Vê as Coisas" foi lançado em 1961 e tem 257 páginas, mas Norton Juster consegue fazer com que a gente "assista" o texto como se fosse uma animação, e as ilustrações de Jules Feiffer -- maravilhosas -- só ajudam o leitor a mergulhar no clima de um longa metragem.
O melhor de cada história é a forma como ela é contada e as sensações que provoca em cada um de nós, leitores. Às vezes o texto soa como música, dá pra ouvir a melodia de palavras marcando o compasso da trama, a gente entra no ritmo do enredo. É o que eu chamo de livro-sinfonia. E quem já não leu um livro cinematográfico, desses que fazem a gente imaginar cenários e atores com tanto realismo que fica difícil gostar de uma eventual versão quando a história vira filme de verdade. E também tem aqueles diálogos especiais, que colocam o leitor na plateia de uma peça de teatro. Nos livros de Salinger, sempre tenho a sensação de que estou sapeando a conversa na mesa ao lado -- é como se eu estivesse vendo o personagem dizer a frase, com aquelas reticências nervosas desenhando as expressões do rosto de quem fala.
Cada livro me leva pra um lugar, e de um jeito diferente. Não é mágica o nome disso?

(ST)

29 de jun. de 2010

Bichos

A pressa é um pernilongo agitado. Fica rodeando com aquele zunzunzum irritante, não disfarça a presença nem a intenção: só quer mesmo é sugar uns goles do nosso tempo-sangue de canudinho. Já a preocupação é um mosquito chato. O danado não pica, mas fica lá, incômodo e feio, esperando um terromoto de braço ou uma ventania de mão pra sair de perto. Mas a tristeza é uma aranha silenciosa, dessas que chegam de mansinho e vão tecendo uma teia invisível, com um emaranhado de nós que prendem na garganta e apertam o peito da gente.

(ST)

27 de jun. de 2010

Uma experiência

"Posso ser leve como uma brisa, ou forte como uma ventania, depende de quando, e como você me vê passar."
...
Difícil é passar por um texto de Clarice Lispector sem sentir nada.

(ST)

25 de jun. de 2010

Aniversário

Este ano: muitos centímetros, um começo de barba, outra voz
E você, espelho do tempo veloz

Sempre: a risada, o olhar, a mesma expressão
E você, espelho do tempo do coração
...

Olho pro meu filho e me emociono: tudo está só começando.

(ST)

23 de jun. de 2010

É assim

Você tá brigando comigo.
Não, não estou.
Tá. Olha o jeito que você tá falando.
Que jeito?
Esse jeito.
Dá pra explicar melhor?
Tá vendo? Você nem percebe.
?
É esse seu jeito italiano.
Como assim?
A voz vai subindo.
Vou prestar atenção.
E as mãos se mexem demais, a boca entorta.
Agora complicou.
É isso. Mãe, você é muito italiana!
E você é muito adolescente!
Viu? Já tá brigando comigo.

...
Acho que não sei falar adolescentês.

(ST)

22 de jun. de 2010

Vovó está namorando

Ela tem gosto de almoço de domingo, cheiro de avião e alegria de festa. Agora também tem olhos de menina.

(ST)

21 de jun. de 2010

Muito pelo contrário

Chorar de alegria
Sonhar acordada
Dizer tudo sem falar nada

Rir das coisas sérias
Correr pra poder tirar férias

E não é que no avesso do avesso
tem a mesma ideia do começo?

(ST)

18 de jun. de 2010

Rumo à ilha desconhecida

"Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar"

Trecho do "Conto da Ilha Desconhecida", uma das fábulas mais bonitas de José Saramago.

17 de jun. de 2010

Céu

Queria aprender o alfabeto das nuvens pra poder ler tantas histórias que vejo passar.

(ST)

16 de jun. de 2010

Afeto

A língua áspera lambe a mão da menina com delicadeza.
Faz cócegas, até arranha de leve, mas nunca fere.
Na língua dos gatos o áspero é doce.

(ST)

15 de jun. de 2010

No clima



“Futebol se joga no estádio? Futebol se joga na praia, futebol se joga na rua, futebol se joga na alma." (Carlos Drummond de Andrade)

(ST)

14 de jun. de 2010

Dicionolândia

Sempre que posso, vou até Dicionolândia. Não é longe, dá pra ir a qualquer hora -- é só embarcar num volume cinco estrelas e fazer a viagem numa poltrona macia, com tempo pra xeretar entre as fronteiras que vão de A a Z. Gosto de passear sem compromisso, com olhos curiosos de turista e, antes pedir informação, tento me virar lendo as placas em voz alta pra descobrir se o som me diz alguma coisa. Mas erro em 99% das vezes. Desembarco na estação "s" e meus olhos batem na palavra "sujigola". Penso imediatamente em gola, imagino um babador manchado de mingau e me surpreendo com a direção tão errada, já que sujigola é o freio que passa debaixo do queixo do cavalo, a correia que prende o animal -- nada a ver com a liberdade que um babador pode significar diante de um prato de macarrão com molho de tomate! Volto muitos quarteirões e encontro a palavra "aralha". Erro de novo, imaginando um pássaro exótico, e não uma novilha que, mesmo sendo pequenininha, já pode puxar o arado. Sigo em frente e empaco de vez em "patripotestal". Lembro de pátria, pedestal, fico repetindo a palavra em voz alta, sem querer começo a cantarolar que moro num país tropical e vou pra longe do seu significado: o poder familiar que se concentra na figura paterna. Mudo de rumo e chego na enigmática "descimbrar". Acho bonito o jeitão desse verbo que me faz pensar em aventura, grandes descobertas: "O marujo Simbad descimbrou-se pelos mares...". Não combina? Pois é, só que descimbrar é retirar os cimbres de um arco depois da construção. Pena, acho que nunca vou ter ocasião pra usar uma palavra tão sonora. Na última parada do percurso traduzo "recovo" como esconderijo e, surpresa, descubro que essa é a posição em que estou enquanto leio: recostada no cotovelo. Difícil essa língua, não?
...
Por causa de um trabalho que tem me levado muitas vezes ao dicionário, lembrei desse texto publicado aqui no ano passado.

(ST)

13 de jun. de 2010

Erramos

Quer dizer, erraram e eu fui de carona, mas, felizmente, o blog tem leitoras atentas como a ilustradora May Shuravel, que cismou com o crédito que publiquei e foi investigar: as duas ilustrações de "Namorar" são de Wolf Erlbruch. Peter Hammer Verlag é o nome da editora.

(ST)

9 de jun. de 2010

Poção

Numa dessas noites frias, voltei a ser a menina que queimava a língua sem paciência de esperar o chocolate esfriar.
Às vezes o passado reaparece assim: um gosto doce e urgente.

...
Lembrei desse texto, publicado aqui em 2008, depois de um dia de coincidências surpreendentes, com o e-mail, o telefone e os sonhos sincronizados em outro tempo.

(ST)

8 de jun. de 2010

Amigas

Amizade, pra mim, sempre foi uma coisa muito séria. Sou do tipo que telefona só pra dizer oi, invento programa, trabalho e todo tipo de assunto pra colocar na roda. Por conta disso, tenho muitas amigas queridas de anos, e sigo fazendo novas "amigas de infância" que vão se entrelaçando nessa rede de afeto que só cresce. Eu já tinha certa simpatia pelas baleias, mas ontem, lendo a Folha.com, fiquei com vontade de inventar uma história -- a do encontro anual das baleias-jubarte, no golfo de São Lourenço, na costa do Canadá. Com técnicas especiais de identificação, os pesquisadores acompanharam uma turma durante seis anos e descobriram que são sempre as mesmas fêmeas que comparecem para comer e nadar juntas, depois de um ano afastadas, cada qual cuidando da própria vida. Os cientistas concluíram que elas formam laços duradouros de amizade, os mesmos com que amarro a minha rede.

(ST)

7 de jun. de 2010

Por escrito

Com a voz contida entre aspas, ela apertava o sorriso entre parênteses, tentando disfarçar as emoções entre vírgulas. Baixava os olhos pra não se revelar nas entrelinhas.

(ST)

6 de jun. de 2010

2 de jun. de 2010

Outro tempo

A ocasião não poderia ser melhor: trabalhos entregues, e-mails respondidos e quase nenhum compromisso nos próximos dias. Abro o arquivo, ansiosa pra retomar um texto começado há meses. Leio, releio, estranho certas palavras, reescrevo, mas não avanço. Volto ao parágrafo anterior uma, duas, muitas vezes. Alguma coisa não se encaixa, ou não me convence, mas não consigo ver o que é. Então resolvo dar uma caminhada pra pensar e logo me dou conta de que não foi por falta de tempo que não voltei a esse texto. A história não está lá e desconfio que ainda não quer se contar, pouco ligando se tenho um feriadão pela frente.

(ST)

1 de jun. de 2010

Mistério

Desconfio que o vento gelado soprou as ideias pra longe. Uma depois da outra, as palavras foram saltando do papel até sobrar só uma frase esquisita, sem verbo e sem graça, toda encolhida de frio.

(ST)