27 de jan. de 2016

saudade

Hoje ela apareceu logo cedo, entrou na cozinha e me surpreendeu ainda de pijama: um susto, eu e o pão pulando da torradeira, e de repente o gosto do lanche que você levava para a escola. A saudade me dá bom dia e diz: hoje também é ontem. Então a convido para ficar, ofereço café fresquinho e espalho lembranças de manteiga nas fatias de um tempo que nunca acaba.

18 de jan. de 2016

um, dois, três: assim começa uma história

No começo e durante muito tempo era apenas o Um.
Certo dia, alguém trouxe o Dois, um siamês ensimesmado -- ou talvez fosse melhor dizer com todas as letras: convencido de sua suposta superioridade – olhando com ares azuis para tudo e todos. O que não tinha em majestade e beleza felinas, Um compensava com um afeto mamífero irresistível, sempre pronto para retribuir cafunés com longas sessões de massagem, duas patas alternando toques de carinho no ritmo de um ronronar enérgico. Diferente de Dois, a vira-latice de Um o predispunha a se agrupar com uma docilidade realmente única: por isso, recebeu o novo companheiro de peito aberto, mostrando logo o quanto queria formar um par com Dois. Com a convivência, Dois encontrou seu lugar e a vida se encaixou em sua sequência lógica até a chegada de Três. Enorme em tamanho e afetividade, o cachorrão levou algum tempo para conquistar a confiança dos gatos, mas ao cabo de algumas semanas, sua determinação ímpar venceu todas as barreiras – sob o olhar incrédulo de Dois, Um não demorou a se entregar às lambidas de Três, macho com aptidões maternais, golden feito de mel, no mesmo tom caramelo dos seus pelos e dos seus instintos grudentos.
A dona da casa gostava dos bichos e, mais ainda, dos números -- esse era o seu alfabeto, um jeito de ler o mundo do zero ao infinito. Por isso, há muito tempo, deixara de ser Camila para se tornar Mil, um nome-número com som de estrada longa, gosto de fartura e vocação para grandes sonhos.

2 de jan. de 2016

feijões

No final de 2014, lembrei aqui daquela experiência que todo mundo já fez nas primeiras aulas de biologia: a de colocar um grão de feijão sobre um punhado de algodão com água, dentro de um pote transparente. Bastava deixar o recipiente num lugar bem iluminado, umedecer o algodão, caso secasse, e esperar. O feijão enrugava e logo aparecia a pontinha de um caule que cresceria rápido, feito mágica, rodeado de folhas verdes. Eu aguardava 2015 com grande expectativa -- a de ver surgirem os brotos de todas as sementes que eu havia plantado. Infelizmente o ano não floresceu como se esperava: difícil para os feijões, e também para o mercado editorial, com contratos cancelados, publicações adiadas, más notícias por toda parte. Mas justamente nesse ano tão árido as palavras brotaram, mais férteis do que nunca, embebendo minha nuvem de algodão com histórias inesperadas. É com esse frescor que começo 2016, e se o tempo da colheita ainda não chegar, que continue inspirando o plantio de muitos sonhos, as melhores palavras e deliciosos feijões.