9 de ago. de 2011

Com que roupa?

Vestir as ideias com as palavras certas é um grande desafio. Inexata ou equivocada, a palavra pode trair a natureza de uma ideia assim como uma peça de roupa mal cortada, numa cor muito intensa ou apagada demais acaba comprometendo todo o conjunto. E tem os excessos: de acessórios-adjetivos roubando o brilho do modelo original, e de tantos outros enfeites que só enfeiam. E tem as repetições: ideias que vão e vem, reaparecendo com a mesmíssima roupa -- como manter o impacto da "primeira vez" vestindo palavras amarrotadas? Cada ideia exige várias experimentações, ajustes e retoques -- como acontece num ateliê de costura, as palavras vão sendo moldadas no corpo da ideia, sob medida. 
Sempre é assim, mesmo quando as ideias estão vestidas de um jeito descontraído, bem simples, tipo jeans e camiseta. Aliás, geralmente são essas que passam mais tempo se arrumando pra sair.

2 comentários:

Eunícia disse...

As combinações que faz são de seda e renda francesa!
:)

Que bom que você escreve!

silvana tavano disse...

Eunicia, obrigada!
E falando em vestir as ideias, a Carla Caruso lembrou de um poema maravilhoso do João Cabral de Melo Neto:
SEVILHA

A cidade mais bem cortada
que vi, Sevilha;
cidade que veste o homem
sob medida.

Justa ao tamanho do corpo
ela se adapta,
branda e sem quinas, roupa
bem recortada.

Cortada só para um homem,
não todo o humano;
só para o homem pequeno
que é o sevilhano.

Que ao sevilhano Sevilha
tão bem abraça
que como se fosse roupa
cortada em malha.

Ao corpo do sevilhano
toda se ajusta
e ao raio de ação do corpo,
ou sua aventura.

Nem com os gestos do corpo
nunca interfere,
qual roupa ou cidade que é
cortada em série.

Sempre à medida do corpo
Pequeno ou pouco;
Ao tecto baixo do míope,
Aos pés do coxo.

Nunca tem panos sobrando
nem bairros longe;
sempre ao alcance do pé
que não tem bonde.

O sevilhano usa Sevilha
com intimidade,
como se só fosse a casa
que ele habitasse.

Com intimidade ele usa
ruas e praças;
com intimidade de quarto
mais que de casa.

Com intimidade de roupa
mais que de quarto;
com intimidade de camisa
mais que casaco.

E mais que intimidade,
até com amor
como um corpo que se usa
pelo interior

O modelo não é indicado
É a nenhum nórdico:
Lhe ficará muito curto
E ele incômodo.

Ele ficará tão ridículo
como um automóvel,
dos que ali, elefânticos,
tesos, se movem,

nas ruas que sevilhano
fez para si mesmo,
pequenas e íntimas para
seu aconchego,

sevilhano em quem se encontra
ainda o gosto
de ter vida à medida
do próprio corpo.