Vestir as ideias com as palavras certas é um grande desafio. Inexata ou equivocada, a palavra pode trair a natureza de uma ideia assim como uma peça de roupa mal cortada, numa cor muito intensa ou apagada demais acaba comprometendo todo o conjunto. E tem os excessos: de acessórios-adjetivos roubando o brilho do modelo original, e de tantos outros enfeites que só enfeiam. E tem as repetições: ideias que vão e vem, reaparecendo com a mesmíssima roupa -- como manter o impacto da "primeira vez" vestindo palavras amarrotadas? Cada ideia exige várias experimentações, ajustes e retoques -- como acontece num ateliê de costura, as palavras vão sendo moldadas no corpo da ideia, sob medida.
Sempre é assim, mesmo quando as ideias estão vestidas de um jeito descontraído, bem simples, tipo jeans e camiseta. Aliás, geralmente são essas que passam mais tempo se arrumando pra sair.
2 comentários:
As combinações que faz são de seda e renda francesa!
:)
Que bom que você escreve!
Eunicia, obrigada!
E falando em vestir as ideias, a Carla Caruso lembrou de um poema maravilhoso do João Cabral de Melo Neto:
SEVILHA
A cidade mais bem cortada
que vi, Sevilha;
cidade que veste o homem
sob medida.
Justa ao tamanho do corpo
ela se adapta,
branda e sem quinas, roupa
bem recortada.
Cortada só para um homem,
não todo o humano;
só para o homem pequeno
que é o sevilhano.
Que ao sevilhano Sevilha
tão bem abraça
que como se fosse roupa
cortada em malha.
Ao corpo do sevilhano
toda se ajusta
e ao raio de ação do corpo,
ou sua aventura.
Nem com os gestos do corpo
nunca interfere,
qual roupa ou cidade que é
cortada em série.
Sempre à medida do corpo
Pequeno ou pouco;
Ao tecto baixo do míope,
Aos pés do coxo.
Nunca tem panos sobrando
nem bairros longe;
sempre ao alcance do pé
que não tem bonde.
O sevilhano usa Sevilha
com intimidade,
como se só fosse a casa
que ele habitasse.
Com intimidade ele usa
ruas e praças;
com intimidade de quarto
mais que de casa.
Com intimidade de roupa
mais que de quarto;
com intimidade de camisa
mais que casaco.
E mais que intimidade,
até com amor
como um corpo que se usa
pelo interior
O modelo não é indicado
É a nenhum nórdico:
Lhe ficará muito curto
E ele incômodo.
Ele ficará tão ridículo
como um automóvel,
dos que ali, elefânticos,
tesos, se movem,
nas ruas que sevilhano
fez para si mesmo,
pequenas e íntimas para
seu aconchego,
sevilhano em quem se encontra
ainda o gosto
de ter vida à medida
do próprio corpo.
Postar um comentário