12 de mai. de 2009

O patinho culpado -- um exercício

Tarefa do (ótimo) curso da professora Noemi Jaffe: recontar uma história infantil conhecida a partir do ponto de vista de um personagem que seja insignificante na trama, sem usar a palavra "não" e com três palavras pouco usuais, garimpadas no dicionário. Segue o texto:

Nascemos todos juntos, eu e meus irmãos. Acho que fui um dos primeiros a quebrar a casca e colocar minha cabeça pelada pra fora. Mamãe logo percebeu a nossa movimentação, deu um pulo e ficou ali, toda orgulhosa, soltando quacs de alegria cada vez que um de nós aparecia. Ele foi um dos últimos da ninhada, mas quando finalmente surgiu, mamãe abriu as asas, assustada, e deu um passo para trás – era um patinho pequeno e escuro, completamente diferente da gente. Preciso reconhecer: desde o primeiro momento, tive problemas para aceitar aquele pato esquisito como irmão. Era um disparate, uma verdadeira fósmea*! Como boa mãe, a nossa tratou de disfarçar o choque e imediatamente saiu chamando as amigas pra que viessem nos conhecer. Todas, sem exceção, perdiam a fala ao ver aquele estranho no ninho, confirmando a minha percepção de que havia alguma coisa muito errada com ele.

Nossos primeiros dias de vida transcorreram sem incidentes, as coisas foram acontecendo como deveriam: com mais ou menos dificuldade, todos nós começamos a circular, ensaiando nossos primeiros passos. Ele bem que tentava se enturmar, mas, acho que era mais forte que nós, ninguém o convidava para ciscar ou passear em volta do lago. Isolou-se, ou nós o isolamos, desde sempre.
No primeiro dia na água, seguimos mamãe, orgulhosos, e fomos, um a um, flutuando naturalmente. Em pouco tempo, formávamos um eito* perfeito, mas nossa harmonia sempre ficava bastante comprometida com aquela presença desengonçada. Invariavelmente, o patinho feio ficava no final da fila, esquecido e ignorado. Marroaz*, ele persistia, tentando a todo custo seguir a família que o rejeitava.
De tanto sofrer, o pobrezinho um dia finalmente decidiu partir. Nem se despediu -- sabia que nenhum de nós sentiria a sua falta. De fato, acho que mamãe ficou aliviada. Fazer o quê? Assim é a natureza.

Mas partir foi a sua sorte. Soubemos que depois de vagar sabe-se lá por quanto tempo, um dia parou para beber água onde uma família de cisnes brincava alegremente. Viu seu reflexo na água e, surpreso, olhou para os pequenos cisnes que vinham se aproximando dele. Sem acreditar, olhou novamente, e mais uma vez, até ter certeza do que estava vendo. Que grande ventura: descobriu-se cisne e foi adotado por aquela família no mesmo dia.

Saber disso tudo aliviou a minha culpa. Dizem que hoje em dia vive muito feliz, belo entre os cisnes. E até onde sei, não guardou mágoa dos patos.

*fósmea: ideia confusa e disparatada; indefinível.
*eito: sequência ou série de coisas que estão na mesma direção ou linha
*marroaz: teimoso, obstinado

Silvana Tavano

6 comentários:

MALU, SIMPLES ASSIM disse...

Mesmo sabendo do final feliz por antecedência, fiquei com um aperto no coração! Adorei!
Bjs.

may disse...

delicia acompanhar seus textos, eito perfeito deslizando no branco dos diários...
may

silvana tavano disse...

Pois é, May, a gente tem que ser "marroaz" pra escrever todo dia, rs. Não é sensacional essa palavra? Acho que vou começar a usar o tempo todo!

Margarete Tsuyako Matsubara disse...

Parabéns pelo texto. Nada como o simples para definir o complexo. Grande beijo

O Bicicletista disse...

Lindo texto. Sem querer parecer marroaz, longe de mim, mas achei fósmea muito interessante também!

Moema disse...

Fazia um tempo que nao passeava por aqui. E´sempre bom. Como rever uma amiga. Sempre reconfortante. Parabens pelo texto...vou mostrar para o meu menino.