Um tempo atrás pensei em escrever uma história de amor entre duas ostras. Fiquei com esse tema na cabeça, imaginando como o casal poderia se cruzar, o quanto iam se achar feios -- com razão, diga-se de passagem --, e como seria difícil o romance engrenar já que, como ostras, os dois eram muito, muito tímidos. O drama teria que evoluir até que a ostra-moça, no auge da paixão, geraria uma pérola. Mas descobri que as coisas não acontecem bem assim: uma pérola se forma quando alguma substância estranha desliza pra dentro da ostra e a irrita. Daí ela se fecha e reage, tentando se defender com um reforço de madrepérola -- o mesmo material que forma a concha. Pelo que entendi, a joia nasce só nesses casos e, mesmo assim, só de vez em quando. Acho que é mais ou menos como um cisco que entra no olho, irrita e faz a gente lacrimejar, sem a parte da pérola. Conclusão: eu precisaria inventar uma situação pra incomodar a ostra. Coloquei o problema na gaveta até outro dia, quando resolvi voltar ao assunto. Na pesquisa, acabei encontrando uma verdadeira pérola, o "Consider the Oyster", escrito em 1941 pela americana M.F.K. Fisher.
...
"As ostras levam uma vida terrível, mas fascinante. De fato, suas chances de sobrevivência são minúsculas, se há alguma. Se conseguem atravessar as duas perigosas semanas da adolescência, podem encontrar um lugar limpo e tranquilo para se fixar. Então começam os anos de paixões, aventuras e ameaças. Nem ela mesma - mas porque chamá-la de ela, exceto por comodismo?-- sabe ainda se é uma ela ou um ele. Uma ostra normal nunca descobre, entra ano, sai ano, a que gênero pertence. Se a temperatura da água for adequada, ele pode se tornar uma ostra e botar milhões de ovos... Se a vida é dura, a de uma ostra é pior. Vive imóvel, silenciosa. Se escapar de todas as ameaças, será apenas para ser comida pelo homem. O corpinho frio escorrega para uma panela, ou um forno, ou ainda vivo, goela abaixo. E acabou-se".
O texto é delicioso. Não abriu meu apetite por ostras, mas sim por outros livros de M.F.K. Fisher. Quanto à história de amor, desisti: o fato "do" ostra em algum momento poder se transformar "na" ostra complicou demais o enredo.
5 comentários:
Silvana, já leu "Ostra feliz não faz pérola", do Rubem Alves? Esse livro é lindo. Tirei da quarta capa: "'Ostra feliz não faz pérola.' A ostra, para fazer uma pérola, precisa ter dentro de sim grão de areia que a faça sofrer. Sofrendo, a ostra diz para si mesma: 'Preciso envolver essa areia pontuda que me machuca com uma esfera lisa que lhe tire as pontas...' Ostras felizes não fazem pérolas... Pessoas felizes não sentem a necessidade de criar. O ato criador, seja na ciência ou na arte, surge sempre de uma dor. Não é preciso que seja uma dor doída... Por vezes a dor aparece como aquela coceira que tem o nome de curiosidade. Este livro está cheio de areias pontudas que me machucaram. Para me livrar da dor, escrevi."
Silvana,
Muito interessante a sua pesquisa!
Como sofre uma ostra!Que vida complicada!Não fazia ideia.
Gostei muito também do comentário
da Fabíola.Não conhecia este livro
do Rubem Alves-Ostra feliz não faz pérola.
Bjs
Cristina Sá do blog:
http://cristinasaliteraturainfantil
ejuvenil.blogspot.com
Um músico americano que compõe para crianças fez, há muitos anos, uma canção sobre a história de amor entre um polvo e um marisco. A história se passa num fundo do mar com ar (?) de velho oeste e os personagens principais se chamam Billy the Squid e Clammity Jane!
A letra da canção é esta:
Billy the Squid
(Tom Chapin & John Forster, 1992)
There are sagas of under-sea outlaws
And the great soggy deeds that they did
But the saltiest thief to come down the reef
Was the outlaw named Billy the Squid
From the Grand Bank steal sand-dollars
And escaped on a sea-horse named Sid
He took from the selfish and gave to the shell-fish
That great-hearted Billy the Squid
In the Pink Coral Lounge – that's a sand-bar
Worked the former Miss Lake Champlain
A beautiful mollusk, a real living dollusk
Her name it was Clammity Jane
Now this dive was as hard as a barnacle
It was real barracuda terrain
Where groupers and grunts pulled unsavory stunts
Which was tough on poor Clammity Jane
One night through the door swam a stranger
To the corner he squirted and slid
All the fish in the room grew as hushed as a tomb
When they saw it was Billy the Squid
But he had not come in for a hold-up
Or for criminal personal gain
He'd come on a mission, he'd come there a-fishin'
For a beauty as Clammity Jane
He said, "Clammit, I done hurt your feelings
And I've caused you some pain, this I know
But before it's too late, I'm gonna go straight
Or as straight as a squid can go"
He asked for her hand, but she had none
And to prove it she lifted her lid
"How 'bout a foot?" and her foot out she put
"It's a beauty!" said Billy the Squid
Then he gathered her up in his tentacles
And as into the sunset they rid
He looked down and Clammily: “Let's start a family!"
"Yahoo!" said Billy the Squid
So then they moved to the submarine suburbs
And when they found that they could not have kids
They adopted three guppies and four dogfish puppies
And a whole bunch of clammits and squids
In the sagas of under-sea outlaws
And the great soggy deeds that they did
There's a clam who prevailed where the sheriff had failed
And she captured bold Billy the Squid!
Dá pra escutar a canção e curtir um 'clip' aqui: http://www.dailymotion.com/video/xck1np_billy-the-squid_fun
Uma abordagem um pouco menos séria, não é?
.
Mas, Silvana, os teus escritos sempre comovem o leitor -- és uma escritora cordial, podemos dizer.
Assim, a primeira ressonância desse texto em mim me fez 'encaixar' a ostra neste campo semântico, nesta série harmônica sugerida pelo Bachelard:
a casa, a cabana, o canto, a gaveta, o cofre, o armário, o ninho, a concha, o abrigo, o refúgio, a miniatura e a imensidão íntima
Karina de Castilhos Lucena, num artigo que pode ser lido na íntegra aqui: http://bit.ly/vC9pa6 e que fala da Poética do Espaço do Bachelard, diz:
Talvez o mais belo capítulo da obra de Bachelard seja A concha. A construção da morada com o calcário expelido pelo próprio organismo já é uma poesia. Por isso, as conchas passam uma imagem de vida que não se lança para frente, e sim gira sobre si mesma. A casa do molusco possui uma forma circular que faz mais do que apenas protegê-lo: é um espetáculo de beleza. Como a preocupação do fenomenólogo de imagens é sempre a simplicidade, a concha torna-se um fecundo objeto de estudo.
Na antiguidade, a concha foi símbolo do ser humano completo: a carapaça correspondia ao corpo; o molusco, à alma. E essa imagem traz uma esperança, afinal, se o ser mais mole pode fabricar a concha mais dura, por que o homem não pode fazer o mesmo? Mas é quando aceita a solidão que o homem realmente vive a imagem da concha. O sonho de morar sozinho, que cedo ou tarde habita em todos os seres humanos, nada mais é do que o desejo de ser envolto pela sua própria concha.
Essa reflexão, tão sensorial, se parece muito com a tua escrita.
Um abraço.
MCris (Maria Cristina...?), obrigada pelas contribuições -- a letra da música é ótima, assim como a citação que você transcreveu. Fiquei curiosa pra ler o artigo, vou acessar o link assim que conseguir um tempinho. E também achei curioso o adjetivo que você escolheu pra nomear a minha escrita: "cordial". Não sei se você usou a palavra com o mesmo sentido com que eu a apreendi, mas o fato é que isso encaixou em certas questões que andam pela minha cabeça ultimamente. De novo, obrigada!
Postar um comentário