8 de dez. de 2016

verão

O frescor da manhã dura pouco. O dia avança com o sol de verão se impondo sem nuances e talvez por isso seja tão difícil escrever: é como se a vida só acontecesse lá fora, elétrica, radiante feito alegria de cigarras, o mundo pulsando, ansioso, chamando pra festa: vem!
No calor das horas, todas as coisas se expõem sem pudor -- ruas, árvores, corpos e humores adquirem contornos exatos ao meio-dia. Mas as palavras se dissolvem, preguiçosas, e adormecem sobre nuvens tênues. Só despertam quando o vento sopra forte anunciando a chegada de nuvens densas, que se concentram, carregadas de energia, trovejando histórias e tempestades.

3 de nov. de 2016

trecho

(…) Em algum tempo da infância, acreditei que esperança fosse o nome de um objeto, algo que a gente podia guardar num armário e perder por aí, como um guarda-chuva. Ou quase isso: por algum motivo, na minha imaginação de criança a coisa-esperança parecia ser um objeto maior e mais valioso do que os guarda-chuvas que minha mãe vivia perdendo (…) 
Muitos anos depois, cheguei à conclusão de que a esperança nem é tão diferente assim de um guarda-chuva: e o que mais pra nos proteger e ajudar a seguir em frente durante as tempestades?

4 de out. de 2016

casa

Os dias passam enquanto percorro os corredores do supermercado, espero a vez no posto de gasolina, na fila do banco, no balcão da farmácia, e a reunião marcada para as 2 começa às 3 e só engata no assunto às 4. No meio disso tudo, cruzo com tantas distrações, acenando, convidativas, vem, vamos tomar um café, e se a gente fosse ao cinema, é o último dia daquela exposição, só um giro pelo facebook, que mal tem?
Dias assim me levam pra longe, nem sempre consigo voltar.
Estou em casa quando tudo silencia: então ouço a campainha, abro a porta e finalmente me acomodo no sofá, rodeada pelas palavras que vem me visitar.

20 de set. de 2016

dicionário imaginário

Casa (s.f) 1. país, cidade, rua ou simplesmente o quarto para onde sempre se quer voltar depois de uma longa ausência; 2. espaço reservado para: botões (das roupas); peças de dama e de xadrez (dos tabuleiros); amigos (do coração); 3. lugar onde geralmente moram a escova de dentes, os livros e os sonhos das pessoas.

3 de set. de 2016

bichos

A pressa é como um pernilongo, a agitação ao redor, o zum-zum-zum irritante, querendo sugar uns goles do nosso tempo-sangue. Já a preocupação é o mosquito que ronda, incômodo, persistente; e a desconfiança sempre é a pulga instalada atrás da orelha. Uma dor forte é como uma picada de abelha: vai fundo e direto ao ponto; só passa se conseguirmos extrair seu ferrão. Mas a tristeza é a aranha silenciosa que tece sua teia invisível, um emaranhado de nós que prendem a garganta e apertam o peito da gente.

22 de ago. de 2016

infância

Como hoje, era uma manhã escura, e eu, pequena, tinha medo que a noite nunca terminasse. Então me escondia debaixo da coberta, encolhida no meu quarto de filha única, quieta, à espera do bom dia dos pratos e talheres acordando na cozinha, e do perfume forte passando pelo corredor -- mãe e pai: minhas certezas a cada amanhecer.

15 de ago. de 2016

pai

espuma de barba
beijo branco
na pele macia

molho de tomate
carinho e cachimbo
no domingo

a montanha mais alta
força e abrigo
na ventania

9 de ago. de 2016

29 de jul. de 2016

nanda

Uma, duas, mil montanhas recortando o céu. Nenhum sol sorridente pairando sobre uma casinha. Nada que se pareça com uma criança de mãos dadas aos garranchos de uma mãe e um pai. Meus primeiros desenhos. É incrível... Já estava tudo ali. Já era eu, uma sementinha de Nanda, as mesmas imagens na cabeça. Por que minha mãe guardou esses desenhos e não outros, eu não sei. Talvez não tivesse outros. Será? Eu não me lembro. Nem disso nem de nada dos meus primeiros anos. Só não é escuridão total por causa das fotografias. Estou lá: um bebê no colo da minha mãe, com 1 ano, 2, depois 3, eu, cercada de brinquedos, pendurada no cangote do meu pai, com todos os avós, uma menininha simpática, cachinhos castanhos, boca, nariz, dois olhos azuis. Tudo no lugar. Pena não lembrar de nada dessa época, aparentemente estava dando tudo certo. As coisas entortaram um pouco antes do meu quarto aniversário (…).

início da história de Nanda, uma das personagens de "E no Fim... Tudo Recomeça de Outro Jeito", livro novo chegando logo, logo, com ilustrações lindas de Nobru, com o selo Moderna.

19 de jul. de 2016

sofia


(…) Não acontece mais. Antigamente, eu olhava pro céu e via a Lu brincando no meio das nuvens, fugindo de um grande dinossauro que se aproximava, descansando em cima de uma nuvem-rede, às vezes até fazendo careta pra mim. Era lindo, chegava a doer de tão lindo e de tanta saudade. Agora é diferente. É só um vazio. Uma saudade triste, como uma nuvem cinza com vontade de chorar. Descobri que o tempo tem esse poder meio mágico de decantar as coisas; é como se aquela dor tão pesada tivesse descido devagarinho até se acomodar e adormecer no fundo do coração. De vez em quando, a dor acorda. Nesses dias, olho pro céu, procuro por ela, mas não acontece mais. Mesmo assim, eu sei que a Lu tá lá, escondida atrás de uma nuvem gigantesca, desmanchando aos poucos, disfarçada entre uma, duas, mil montanhas recortando o céu.

trecho da história de Sofia, uma das personagens de "E no Fim... Tudo Recomeça de Outro Jeito", livro novo chegando logo, logo, com ilustrações lindas de Nobru, com o selo Moderna.

15 de jul. de 2016

simulacro

rosa de pano, maçã de cera, joia de vidro
-- e certos sorrisos:
tantas coisas iludem
o olhar distraído

4 de jul. de 2016

martin

(...) "Às vezes penso que, um dia desses, saindo do mar, eu encontro a Maira na praia, sentadinha, me esperando, e tudo volta a ser como antes. A gente vai se abraçar e nada mais vai doer em mim. Ainda dói. Toda vez que piso em terra firme, ela me pega, a dor. Então vou pro mar porque o mar é meu chão, cara. De vez em quando as coisas também ficam escuras dentro do tubo, mas o céu azul tá lá, sempre tá, a gente tem que acreditar, concentrar no equilíbrio pra descer numa onda gigantesca e seguir com ela até que tudo se desmanche. É isso, cara. Em todas as coisas, tem que ir até o fim". 

trecho da história de Martin, um dos personagens de "E no Fim... Tudo Recomeça de Outro Jeito", livro novo chegando logo, logo, com ilustrações lindas de Nobru, com o selo Moderna.

21 de jun. de 2016

inverno

é como um toque de recolher: os dias vão embora mais cedo, encolhidos de frio, e a vida lá fora se aquieta para que a gente escute as palavras de dentro.

14 de jun. de 2016

casa

Um jardim de tecido estampado com florzinhas delicadas convida: entra! Então abro o caderno, devagar, e vou passeando pelas linhas; sigo nessa direção, encontro o fio da história e com ele amarro as palavras que começam a chegar -- uma, duas, muitas --, querendo morar nesse lugar.

7 de jun. de 2016

esperança

é a caixinha de fósforos que a gente mantém sempre por perto, na gaveta do criado mudo ou na cozinha, para conseguir acender uma vela quando a luz acaba de repente -- a certeza de uma chama que pode nos guiar na escuridão.

26 de mai. de 2016

inverno

noite escura
céu deserto
ninguém na rua

 de repente
entre nuvens
      luz

crescente lua
     se insinua

15 de mai. de 2016

aconteceu na escola

7h12. Entro no carro e emendo o bom-dia com um desculpe por causa do meu atraso de uns dois minutos. Nem assim o pai do Edu vira o rosto pra dar um olá. Tem dias em que ele está muito mal humorado e, pelo visto, hoje é um desses dias. Então sento no cantinho e tento me ajeitar com a cabeça da Dani já no meu ombro. É incrível como ela consegue dormir em qualquer lugar e posição! A irmãzinha do Edu boceja um oi sonolento, e ele resmunga outro, com a cara enfiada na mochila. Parece que está procurando alguma coisa importante. O carro segue em silêncio pelo caminho de todos os dias rumo à escola. Esse programa é mais animado quando vamos com a mãe da Dani. Ela fala o tempo todo, fica perguntando coisas, às vezes até canta junto com o rádio. É uma alegria. Mas, às vezes, olho pra ela e vejo uma daquelas mães-margarina de comercial de televisão. Desconfio. Bom, isso tem a ver comigo. Sou desconfiada. 
Segundas e quintas vamos com a minha mãe. Antes de ligar o carro, ela checa o batom no espelhinho, depois acende um cigarro e engata, com o celular na mão. Ela vive querendo parar de fumar. Quer dizer, vive dizendo que quer parar. Pra mim, tanto faz. Já me acostumei a ver minha mãe através da fumaça.
(…)
trecho do conto "Sexta-Feira", em "Aconteceu na Escola", projeto tive a felicidade de participar ao lado de uma turma incrível: Blandina, Gilles Eduar, Índigo e Maria Amália Camargo.

6 de mai. de 2016

mãe

a fivela-pente, o anel de pérola
o bloquinho de notas com a letra dela
uma foto-binóculo, a carteira de identidade
abro a caixinha, encontro a saudade

30 de abr. de 2016

casa

Os dias passam enquanto percorro os corredores do supermercado, espero a vez no posto de gasolina, na fila do banco, no balcão da farmácia, e a reunião marcada para as 2 começa às 3 e só engata no assunto às 4. No meio disso tudo, cruzo com tantas distrações, acenando, convidativas, vem, vamos tomar um café, e se a gente fosse ao cinema, é o último dia daquela exposição, só um giro pelo facebook, que mal tem? Dias assim me levam para longe, nem sempre consigo voltar.
Estou em casa quando tudo é silêncio: então ouço a campainha, abro a porta e me acomodo para receber as palavras que vem me visitar.

28 de abr. de 2016

preocupação

é uma nuvem que encobre o pensamento em sombras, ameaçando tempestades que nem sempre acontecem.

4 de abr. de 2016

memória

Às vezes é uma frase, ou nem isso: é só o jeito de dizer. Certa música, um cheiro inesperado, coisas que acontecem e imediatamente me colocam em outro lugar, como se eu estivesse sentada na cabine de um trem que me leva em alta velocidade rumo aos meus sete, oito anos. Na primeira estação, uma menina acena da plataforma, sorri pra mim e no mesmo instante já está dentro do vagão, sentada ao meu lado, repetindo a frase ou trazendo de volta o perfume que agora viaja comigo. A viagem prossegue e ela se acomoda no meu colo; pouco a pouco adormece dentro de mim, ninada pelo sacolejo rápido do trem, sonhando num tempo que nunca envelhece.

13 de mar. de 2016

dani vai dançar

(…) Tenho onze anos e sempre dou um jeito de ficar doente ou inventar uma desculpa pra não participar das aulas de educação física. Mas hoje o professor não me dispensou e depois do aquecimento me convoca pra fazer parte de um dos times de vôlei. Não tenho chance de dizer que não sei jogar, minha boca trava, a voz desaparece pra sempre. Então ele me chama, do centro da quadra, apontando a posição que devo ocupar, e chama de novo porque não me mexo, na inútil esperança de que alguém se ofereça e me salve do desastre. Enquanto caminho em direção à quadra percebo um grupinho de meninas cochichando e rindo, na mesma hora tenho certeza de que estão falando de mim, por isso abaixo a cabeça e sigo, devagar, suando dentro do uniforme, desconfortável, desajustada, sempre eu. O jogo começa, a bola passa voando por cima da minha cabeça, uma vez, duas, e de novo, o time vai trocando passes como se eu não existisse, e de repente algo acontece, uma coisa por dentro, forte, uma espécie de raiva que me lança pro alto, é só um impulso mas me deixo levar e subo: meu corpo ultrapassa o limite da rede, o braço esticado e minha mão lá em cima, alcançando a bola antes das outras mãos com um toque certeiro, delicado, inesperado: marco um ponto para o time, todos comemoram. Pela primeira vez, aplausos.
trecho de "Dani Vai Dançar, meu conto em "A Vida é Logo Aqui", coletânea organizada por Nelson de Oliveira, pela editora Sesi-SP

7 de mar. de 2016

relicário


No começo, era só um vaso de barro não muito grande, duas mudas magrinhas, promessas de felicidade e fortuna enraizadas na mesma terra. Cresceram devagar sobre as pedras que iam chegando de tantos lugares, plantando ali histórias de rios, montanhas e dias de sol. Hoje as árvores tocam o teto da sala, abraçadas dentro de um vaso largo e amarelo, junto com os cristais transparentes, o buda da sorte, a corujinha de pedra-sabão da mãe, o enfeite que o filho fez numa noite de um natal distante. Gosto de rezar assim: regando a minha planta.

1 de mar. de 2016

gatos

a língua-lixa lambe
com delicadeza
varre a pele
com doçura
fala do afeto
com dureza
na língua dos gatos
amor rima com aspereza

19 de fev. de 2016

escrever

A moça abaixa o vidro do carro e acende um cigarro. Seu olhar preocupado passa rapidamente pelo espelho lateral. Solta a fumaça e parece relaxar, a cabeça pendendo sobre o ombro por um brevíssimo instante. Então alguém buzina e, automaticamente, ela e eu engatamos e seguimos. Continuo atrás do seu carro por alguns quarteirões, mantendo certa distância: para onde ela estará indo? Me divirto imaginando enredos para aquela personagem: ela tem 30 e poucos anos, usa maquiagem leve, batom discreto. Poderia ser advogada ou, quem sabe, uma executiva tensa, atrasada para a reunião na empresa, as duas mãos segurando firme na direção do carro preto, quatro portas travadas. As árvores que ladeiam a avenida desenham reflexos disformes nos vidros revestidos com película escura, através da qual ela infelizmente não pode ver o céu tão azul desse início de tarde. Pouco antes de uma lombada, ela diminui a velocidade e, por um instante, seus olhos me encaram pelo retrovisor, como que dizendo: ei, você, preste atenção, não vá bater no meu carro! Ou quem sabe tenha percebido e se incomodado porque eu a observava. Quando canso da brincadeira, dobro a esquina e retomo o meu caminho, mas de repente me surpreendo ao ver o carro dela, agora atrás do meu. Antes de nos percamos de vista, lembro do olhar me encarando pelo espelho e penso que, talvez, também ela inventava uma história para mim.

11 de fev. de 2016

calma

Às vezes, ela entra pelos olhos, aproveitando o momento em que eles se fixam no céu para acompanhar um desfile de nuvens, ou então grudam num livro, encantados pelas palavras. Também acontece de ela penetrar pelo nariz e se esparramar, espaçosa, preenchendo todos os cantos com ar de férias -- um ar sem pressa, mais pleno de ar. Quando ela chega, o giro dos pensamentos entra em câmera lenta, o peito alarga e o coração espreguiça, batendo no compasso de uma felicidade quieta, que se anuncia sem disparos. Calma é assim: uma música silenciosa que muda o ritmo de tudo dentro da gente.

27 de jan. de 2016

saudade

Hoje ela apareceu logo cedo, entrou na cozinha e me surpreendeu ainda de pijama: um susto, eu e o pão pulando da torradeira, e de repente o gosto do lanche que você levava para a escola. A saudade me dá bom dia e diz: hoje também é ontem. Então a convido para ficar, ofereço café fresquinho e espalho lembranças de manteiga nas fatias de um tempo que nunca acaba.

18 de jan. de 2016

um, dois, três: assim começa uma história

No começo e durante muito tempo era apenas o Um.
Certo dia, alguém trouxe o Dois, um siamês ensimesmado -- ou talvez fosse melhor dizer com todas as letras: convencido de sua suposta superioridade – olhando com ares azuis para tudo e todos. O que não tinha em majestade e beleza felinas, Um compensava com um afeto mamífero irresistível, sempre pronto para retribuir cafunés com longas sessões de massagem, duas patas alternando toques de carinho no ritmo de um ronronar enérgico. Diferente de Dois, a vira-latice de Um o predispunha a se agrupar com uma docilidade realmente única: por isso, recebeu o novo companheiro de peito aberto, mostrando logo o quanto queria formar um par com Dois. Com a convivência, Dois encontrou seu lugar e a vida se encaixou em sua sequência lógica até a chegada de Três. Enorme em tamanho e afetividade, o cachorrão levou algum tempo para conquistar a confiança dos gatos, mas ao cabo de algumas semanas, sua determinação ímpar venceu todas as barreiras – sob o olhar incrédulo de Dois, Um não demorou a se entregar às lambidas de Três, macho com aptidões maternais, golden feito de mel, no mesmo tom caramelo dos seus pelos e dos seus instintos grudentos.
A dona da casa gostava dos bichos e, mais ainda, dos números -- esse era o seu alfabeto, um jeito de ler o mundo do zero ao infinito. Por isso, há muito tempo, deixara de ser Camila para se tornar Mil, um nome-número com som de estrada longa, gosto de fartura e vocação para grandes sonhos.

2 de jan. de 2016

feijões

No final de 2014, lembrei aqui daquela experiência que todo mundo já fez nas primeiras aulas de biologia: a de colocar um grão de feijão sobre um punhado de algodão com água, dentro de um pote transparente. Bastava deixar o recipiente num lugar bem iluminado, umedecer o algodão, caso secasse, e esperar. O feijão enrugava e logo aparecia a pontinha de um caule que cresceria rápido, feito mágica, rodeado de folhas verdes. Eu aguardava 2015 com grande expectativa -- a de ver surgirem os brotos de todas as sementes que eu havia plantado. Infelizmente o ano não floresceu como se esperava: difícil para os feijões, e também para o mercado editorial, com contratos cancelados, publicações adiadas, más notícias por toda parte. Mas justamente nesse ano tão árido as palavras brotaram, mais férteis do que nunca, embebendo minha nuvem de algodão com histórias inesperadas. É com esse frescor que começo 2016, e se o tempo da colheita ainda não chegar, que continue inspirando o plantio de muitos sonhos, as melhores palavras e deliciosos feijões.